por | 20 Abr, 2023 | Sociedade

Amputação: Do trauma à aceitação

O Rita perdeu as pernas, mas não a vida

Embora não seja pelos melhores motivos, este paraplégico é uma das pessoas mais conhecidas (e faladas) da vila de Lousada. Quase ninguém o conhece pelo nome Joaquim Carlos, com que foi batizado há 52 anos, na freguesia de Nespereira, onde reside. É tratado por Rita, a alcunha da família, que vem do tempo do seu avô. O que o torna célebre é a falta das duas pernas, perdidas num acidente de trabalho, em Lisboa, há 26 anos.

Embora limitado fisicamente, o Rita não fica muito no mesmo sítio, o que o torna difícil de encontrar. Constatamos isso quando o procuramos para esta entrevista. Tem telemóvel, mas está quase sempre desligado. “Ele circula muito pelos cafés daqui até à Galp e só não vai para a Vila porque a cadeira de rodas está toda estragada”, disse-nos alguém num café perto da sua casa, ali para os lados do lugar do Cruzeiro, em Nespereira. Quando contamos ao que íamos, essa pessoa no referido café disse num tom jocoso e em jeito de aviso: “esta altura do dia não é boa para o entrevistar”, e fez um gesto com a mão fechada e o polegar apontando para a boca aberta, como que a dizer que ele tinha bebido muito.

Após algumas conversas percebe-se que o Rita “é falado”. É como alguém disse um dia das pessoas de etnia cigana, que não falam, não têm voz pública, mas são falados. “Falam muito dele porque é uma figura conhecida da terra e infelizmente não é falado por boas razões”, disse outro conterrâneo cujo nome não registamos. A pena e compaixão é notória nestas pessoas em relação ao Rita. A ironia e a complacência também.

Durante a nossa abordagem o entrevistado revelou-se uma pessoa afável e simpática. Embora muito expressivo nas feições e nos gestos, Rita não fala muito, nem fala com boa dicção. A sua voz cavernosa e rouca dificulta a perceção. Quando fala depressa fica ainda mais difícil, senão mesmo impossível, perceber o que quer dizer.

Embora com muitas repetições a entrevista fez-se, mas não no dia previsto. Na verdade, nesse dia em que primeiramente o procuramos, estava um bocado “tocado” pelo álcool.

“Não tenho problemas com a bebida, aliás eu não tenho problemas com nada, sou uma paz de alma, não vale a pena arranjar problemas, sou muito pacífico e todos deviam ser assim”, começou por dizer. Mas gosta de beber cerveja, a sua bebida preferida, e admite que “por vezes” exagera um bocado “nos favaios e nos martinis” e às vezes é ele quem paga, “mas tenho muitos amigos que aparecem e me pagam copos”.

Também fuma muito. Tabaco. “Se tiver três maços sou bem capaz de os fumar num só dia”, afirma. Depois tem que cravar porque o dinheiro da pensão de invalidez não estica. Mas sublinha que não é viciado em nada: “se tiver que ser, estou um dia sem fumar nem beber e não se passa nada”. Sobre “substâncias mais pesadas”, diz que “falam por aí que me meto nisso, mas é mentira, nunca me meti em drogas pesadas e até sou contra isso”.

Uma tragédia em Lisboa

Foi no dia de São Martinho de 1996 que a vida de Joaquim Carlos Nunes da Cunha virou de pernas para o ar. Estava a trabalhar para uma firma de Lousada na construção de um armazém para a Valouro-Avibom, do conhecido empresário lisboeta José António dos Santos, mais conhecido por Rei dos Frangos.

“Eu fui sempre operário, primeiro na Famo, com 12 anos de idade, depois fui para a construção civil, estive em Espanha e na Alemanha. Nunca me tinha aleijado ao ponto de ter tratamento. Naquele dia as chapas de fibrocimento, caíram do teto e traçaram-me as pernas. Fiquei em estado de coma durante 28 dias, no hospital de São José, em Lisboa. Quando vim a mim não me lembrava de nada, e nunca mais me lembrei ao certo do que aconteceu, foi muito rápido. Só sei que não havia nada a fazer”, relata Joaquim Carlos Rita, com uma naturalidade e simplicidade que denota aceitação. “Trauma? Eu? Tinha que aceitar e dar graças por estar vivo. Muita gente não tem a sorte de ficar sem pernas, fica logo sem a cabeça”, acrescenta com um riso de quem procura ser bem humorado ou positivo com o assunto.

Vive com uma irmã e com a mãe. O pai faleceu há poucos anos. O handicap de Rita não lhe permite aceder a muitos trabalhos e vive da pensão de invalidez. Entretanto já trabalhou numa fábrica de confeções. Agora faz biscates, como ir buscar o jornal para este e aquele café, por exemplo. À medida que vamos registando as suas declarações, constatamos que a cadeira de rodas está em muito mau estado, diríamos mesmo deplorável. “Os passeios e as estradas estão cheios de buracos e paralelos soltos que me estragam a cadeira”, desculpa-se.

A ferrugem e as amolgadelas são um mal menor. O que impressiona é a falta de pneus nas rodas grandes, uma das quais é maior que a outra. E uma das rodas pequenas está partida, enquanto a outra já não é de origem, nem daquele tipo de cadeira. “Estou à espera que a Fidelidade (companhia de seguros) me dê uma nova, mas está a demorar muito”, justifica.

Diz que já teve uma cadeira em fibra de carbono e com ela fez deslocações muito longas: “já fui a Fátima e a Lisboa, andei por Sintra, Ericeira, percorri a capital, enfim gosto de viajar de cadeira de rodas, mas não gosto de entrar em corridas de competição a sério, nem basquetebol”.

Além de uma cadeira nova, diz que não tem muitos planos. Nem casar, nem ter filhos. “Quem é que ia querer um homem assim? Quero viver a minha vida o melhor possível, sem ondas, na paz”, diz Joaquim Carlos Rita, que só lamenta não poder fazer uma coisa: conduzir um automóvel.

PERDA DE MÃO DEU MAIS FORÇA A ORLANDO

A incapacidade como motivo de superação

Fazer das dificuldades e das incapacidades motivo de superação é muitas vezes a atitude de pessoas com membros amputados. O caso de Orlando Pinto é um exemplo disso. Aos 18 anos de idade este cidadão de Meinedo perdeu a mão esquerda numa fábrica de moldes para peças de automóveis. O choque inicial não durou muito por causa do apoio que teve da família e da empresa. Hoje, com 52 anos, diz que fez dessa incapacidade uma força e um motivo para se superar em cada tarefa ou atividade em que se envolve, sobretudo na profissão de sub-gerente e barman na restauração hoteleira.

Embora tenha uma mão artificial (prótese elétrica), Orlando Pinto trabalha como sub-gerente e barman num café-restaurante. Diz que faz “tudo o que é preciso”, mas admite que os colegas de trabalho “fazem certas coisas mais rápido, como por exemplo levar os pedidos às mesas, porque eles conseguem levar tudo de uma vez enquanto eu preciso de mais que uma ida”. Ainda assim “tento sempre superar-me, ser mais eficiente, procuro fazer mais e melhor”, explica.

O trabalho nunca lhe “meteu medo” e desde muito cedo se tornou operário. “Aos 14 anos fui para uma oficina de automóveis em Ermesinde e depois numa outra em Vila Meã” e quatro anos mais tarde foi para uma fábrica de fundição em Senhora da Hora (Matosinhos).

Ali aconteceria um infortúnio que o marcou para a vida. “Era uma fábrica muito automatizada, que fazia moldes para peças dos carros Mercedes e certo dia uma peça encravou o mecanismo que ficou parado e eu tive que ir retirar essa peça. Confiei no sistema de segurança, mas este falhou e acionou automaticamente a máquina, que me cortou a mão esquerda”, descreve Orlando Pinto com a serenidade de quem há muito superou aquele nefasto acidente.

O choque inicial não terá sido o mais forte. “Até um certo ponto eu estive iludido porque achava que ia voltar a ter a minha mão”, confessa. Por ingenuidade ou falta de aceitação da tragédia, o que é certo é que acreditou no impossível até ao dia do primeiro curativo, dias depois da operação, no Hospital de São João (Porto). Nesse dia “é que a ficha caiu, ou seja, que eu percebi a realidade e isso foi um choque pior que o acidente”, afirma com algum pesar, próprio de quem recua no tempo e revive o momento marcante. “Foi nesse curativo que me disseram que eu nunca mais ia ter a minha mão”, exclama.

Seguiu-se uma reabilitação rodeado de amigos e familiares, mas “a empresa e a companhia de seguros foram sempre muito corretos comigo, nunca me abandonaram nem prejudicaram, o que nem sempre acontece nestes casos, como se sabe que acontece em algumas situações onde as pessoas e firmas se procuram descartar de responsabilidades”, esclarece Orlando Pinto, que recebeu a respetiva indemnização financeira e foi mantido na mesma fábrica, na secção de controle de qualidade.

Depois do hospital público passou para o hospital privado da companhia de seguros, onde afirma que não teve apoio psicológico “porque eu já tinha o melhor apoio que podia ter, que era dos pais, irmãos, dos amigos e mais tarde da minha namorada e esposa, com quem tenho uma filha e uma neta”.

Teve fisioterapia intensiva e experimentação de próteses de substituição. A primeira era muito desconfortável, com correias e alças. Mais tarde surgiu a prótese bioelétrica, que funciona com sensores que são acionados pelos estímulos dos tendões e músculos do braço. “Cheguei a experimentar uma prótese biónica que é mais avançada, mas eu não gostei”, revela.

Vinte anos depois de entrar para a fábrica, rescindiu contrato para se juntar ao cunhado na restauração hoteleira e mantém-se nessa atividade. “Nada me custa em relação à falta da mão, a não ser quando alguém se apercebe que tenho uma mão artificial e fica com pena, diz «oh, coitadinho» e coisas desse género”, afirma Orlando Pinto.

A recuperação e adaptação à nova realidade “provocou-me irritação quando eu não conseguia fazer o que queria, mas atualmente faço tudo o que quero, desde nadar, andar a cavalo e correr, que são as minhas atividades preferidas”. As corridas de fundo e de meio-fundo são as suas preferidas e já participou em quase todas as principais provas do género na região, incluindo a maratona de Sevilha (Espanha). A par disso vive para o trabalho e para a família e confessa-se um homem feliz.

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