por | 3 Mar, 2024 | Dar voz aos livros, Opinião

Da poesia e do silêncio: A Margem da Alegria, de Ruy Belo

Agora que a primavera se anuncia e o dia mundial da poesia se aproxima, é imperativo lembrarmos um dos nossos poetas maiores – Ruy Belo.

Em A Margem da Alegria, livro publicado em 1974, o poeta alonga-se pelos  versos, abrindo neles rios e afluentes por onde tendemos a perdermo-nos na certeza, porém, que a palavra poisa nas coisas e as rodeia daquele silêncio que é sempre a única forma de dizer o poema, tal como é visível nas palavras do poeta: «Há cotovias no teu silêncio/ há coisas de outra idade neste dia»(p.140).

O que vemos, então, pela palavra escrita (e pelo voo poético), é a perplexidade perante aquilo a que designamos como realidade. Poeta será aquele que encontrou na linguagem um contorno para o silêncio que há na natureza, na realidade – aqui, em especial no campo, «e o silêncio consente que falem as coisas uma a uma/ desde o cardo desde as árvores rasteiras» (p.93). Ele prende na linguagem o silêncio das coisas, o indizível do ser. Ele faz dizer o silêncio.

Na voz de Ruy Belo encontramos, consequentemente, esse romper das relações habituais entre as palavras que criam um novo dizer pelo assombro, pela surpresa. Mesmo num poema tão longo como este, o sujeito poético quer fazer falar, fazer ouvir um silêncio em volta das palavras, «quando o mínimo gesto era um gesto criador/ e as coisas começavam e o mundo sempre em simples sons se descobria». O poeta trabalha as palavras até elas coincidirem com o mistério, serem a evidência do mistério.

O silêncio remete, assim, para uma espécie de ausência de algo inerente ao ser humano, uma incompletude que se poderá traduzir nessa entidade não discursiva do silêncio. A poesia trabalha os limites das formações discursivas, dando espaço à palavra, à linguagem poética enquanto horizonte possível do a dizer, ou do por dizer.

No fundo, a primavera traz ao ombro a poesia que é o silêncio a consentir a palavra, deixando que falem as coisas, sabendo de antemão que «a vida era a mágoa […] que só pedia a beleza contida num pequeno copo de água» (p.140).

Conceição Brandão

Professora

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