Enfermeiro Vasco Bessa é o rosto da AMI em Lousada

Apoio aos mais desfavorecidos faz parte da sua história de vida
Vasco Bessa Martins Dias nasceu em Figueiras, Lousada, há 67 anos, mas parte da sua história de vida está em Angola, para onde foi viver com apenas 6 anos de idade. Este facto perturbou a sua infância, tendo de se adaptar a uma realidade diferente.

O pai tinha negócios em Angola, onde alcançou grande sucesso. “O meu pai tinha talhos, um hotel, uma fazenda e umas vinte, trinta casas, antes de 1975”, conta. Por isso, a família fixou residência na colónia. Vasco Bessa tinha quatro irmãos, que também cresceram lá.

Percurso académico realizado em Angola

Em Angola, realizou todo o seu percurso académico, desde a primária ao curso de enfermagem. Foi aí também que iniciou a sua vida profissional, na província de Huambo, outrora Nova Lisboa.

O enfermeiro recorda os tempos da primária e do liceu, numa província que era, na altura, mais escolarizada que as restantes. “A escola primária tinha todas as condições, não havia racismo, mas sim multiculturalidade. O liceu também era bom”, caracteriza. A camaradagem e a amizade eram também pontos positivos, independentemente da cor da pele. “Quando uns não tinham pão, o vizinho dava-lhes metade. Havia muita amizade e muita solidariedade”, recorda.

O enfermeiro Bessa viveu em Angola até aos 22 anos, onde trabalhou na área da saúde: “Considero que as condições eram ótimas. A nível profissional, sentia-me realizado. O primeiro hospital em que trabalhei foi o Hospital Central de Huambo”, conta.

De espírito aventureiro, já na altura pertencia à Cruz Vermelha

Internacional. “Nessa altura, fazíamos missões na África do Sul e noutros locais em Angola, devido a várias epidemias, e a Cruz Vermelha era o rosto de muitas campanhas”, explica.
Durante um curto período de tempo, cumpriu serviço militar numa campanha como enfermeiro. Apesar do conflito armado, sempre se sentiu seguro. “Praticamente não senti a guerra. Havia muita segurança à noite”, refere.

O regresso sem nada, após a descolonização

A revolução de 25 de Abril veio alterar a vida dos portugueses em Angola. “Na altura, ficamos contentes, pois queríamos a democracia. Houve manifestações em Angola, muita gente contente, pois deixou de haver guerra”, descreve. Mas o período que se seguiu foi de incerteza e a descolonização “catastrófica” acabou por confirmar os piores receios. Os portugueses tiveram de regressar à pressa, deixando para trás tudo o que construíram em muitos anos de trabalho: “Não fomos ouvidos nem achados, e os nossos interesses não foram salvaguardados. Perdemos tudo. Foram entregues 5 contos a cada retornado e só podíamos trazer 30 kg de roupa. Todo o património ficou lá”, conta.

Foi sobretudo o medo da guerra civil e da fome em Angola que empurrou os portugueses para fora da antiga colónia. Vasco Bessa não culpa os angolanos, mas sim os políticos portugueses, que, na sua opinião, negociaram muito mal a independência. “Muitos portugueses como nós fomos as vítimas da descolonização”, acrescenta.

Se a partida foi dolorosa, a chegada a Portugal não foi melhor: “Chegamos muito tristes e fomos muito mal recebidos”, lamenta. Os retornados contribuíram, no entanto, para o desenvolvimento do país: “Portugal acabou por melhorar muito com a nossa vinda, pois nós éramos empreendedores. O começar vidas novas impulsionou a economia portuguesa. Há uma dívida muito grande de Portugal para com todas as vítimas da descolonização”, afirma.

“Em 1975, Lousada era uma vila muito atrasada”

Assim que chegou a Portugal, com apenas 22 anos, o enfermeiro começou a trabalhar em Lousada, no Centro de Saúde de Caíde de Rei e no Hospital da Misericórdia. Os pais, entretanto falecidos, chegaram a Portugal na miséria e decidiram ir trabalhar para os Açores. Depois da reforma, regressaram a Lousada.

Em 1975, a habituação à sociedade portuguesa não foi fácil e Vasco Bessa estranhou muito o ambiente e as pessoas. Recorda que Lousada era “uma vila muito atrasada, com muitas debilidades”, não a nível de saúde, mas em relação aos transportes públicos e equipamentos escolares. “Apenas havia o colégio Eça de Queiroz”, recorda.

Durante uma década acumulou as funções no Centro de Saúde de Caíde com o Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Depois, deixou o Centro de Saúde, permanecendo no hospital, até este passar para a administração privada. Os últimos anos da sua carreira foram ao serviço no Centro de Saúde de Lousada, que terminou com a reforma em 2014. “Senti-me realizado. Tenho ótimas recordações da camaradagem entre os colegas”, lembra. Nos últimos anos, foi assessor do ACES: “Foi gratificante trabalhar com eles”, declara.

A vida em prol dos outros

O espírito altruísta revelou-se quando ainda estava em Angola, nas missões da Cruz vermelha, “uma experiência maravilhosa e enriquecedora”, que lhe proporcionou a satisfação de dever cumprido. Desse período guarda algumas recordações, que o marcaram para a vida, como a solidariedade de quem quase nada tinha: “A vacinação da cólera em Angola marcou-me muito. Fomos enfiados dentro de um jipe. Comíamos aqui e acolá. Chegávamos a meio da campanha e não tínhamos o que comer, nem tínhamos sabão para tomar banho e até roupa faltava. A população dava-nos de comer. Foi uma grande aventura passar um mês por lá, sem ver civilização. Muita pobreza, mas muita solidariedade por parte dos indígenas. Nunca nos faltou de comer. Eles ajudaram sempre”, recorda.

1 de julho de 2005 é um marco na solidariedade em Lousada

Depois de chegar a Portugal, conheceu a história da AMI, deixou-se entusiasmar pelo projeto e tratou de o trazer para Lousada: “Pedi ao Dr. Fernando Nobre a possibilidade de trazer a AMI para Lousada. Ele foi recetivo. Falei então com o Dr. Jorge Magalhães da Câmara Municipal. Recorda que o autarca “foi de uma abertura excecional”: “Se não fosse ele, não tínhamos este núcleo”, afirma.

Vasco Bessa, enquanto enfermeiro, conhecia a realidade do concelho, em particular as dificuldades em determinados lares. “Sentia que não existia uma entidade que olhasse por essas pessoas. Havia situações de pobreza escondida, que precisava de um outro tipo de intervenção, mais cuidada e mais solidária. Eu senti o chamamento de ajudar os outros e tudo fiz para criar este núcleo. A sua abertura foi um sonho realizado”, diz, com satisfação.

▲Enf. Vasco Bessa no Festa dos Idosos da AMI em 2007

Inicialmente, a AMI abriu no edifício da Copagri, com as valências de vestuário e de alimentação. “Chegamos a ter mil e tal beneficiário nos primeiros tempos. Eram mesmo tempos muito difíceis. Tínhamos muitas toneladas de alimentos e saía tudo para muitos lares. Fazíamos a distribuição por todas as freguesias, em colaboração com os presidentes das juntas de freguesia”, explica.

Para além da satisfação das necessidades básicas, a saúde também fazia parte das preocupações da AMI, que realizava rastreios à hipertensão, diabetes e colesterol. Para angariar fundos com o objetivo de ajudar a população, realizavam-se também atividades culturais, de que é exemplo a Gala de Fados. A Festa do Idoso, realizada anualmente, foi durante muito tempo, uma das atividades desenvolvidas. “Para o ano, se Deus quiser, vamos voltar a fazê-la”, promete.

Faltam voluntários

Mas nem tudo é fácil na AMI. A maior dificuldade é a falta de voluntários. “É preciso mais mãos para a ajuda solidária”, apela. E continua: “O maior risco é haver poucas pessoas a abraçar este tipo de projetos. Temo que no futuro não surja alguém com o espírito de solidariedade que se entregue a esta causa. Temo pelo futuro da AMI”.

Depois de uma década no edifício da Copagri, a AMI mudou-se para as novas instalações, contando para tal com o apoio da autarquia, que assegura o pagamento da renda. “O balanço é ótimo, pois as instalações são boas, estando a cumprir com as metas que tínhamos estipulado. Mensalmente ajudamos cento e muito utentes, isto na questão alimentar, e na roupa à volta de duzentas pessoas. “Surgem 5, 6 pessoas por dia. Damos a toda a gente, basta trazer o cartão de cidadão”, esclarece.

O número de famílias apoiadas por esta instituição varia em função da ajuda prestada, mas as crianças merecem destaque. São cerca de 70, as apoiadas. Para além do material escolar, também são presenteadas com brinquedos, em alturas especiais.

A pandemia trouxe mais miséria

A pandemia da Covid 19 veio complicar ainda mais a vida da população desfavorecida, o que fez aumentar o número de utentes. “Temos feito o máximo que podemos para pelo menos minimizar o sofrimento dessas pessoas. É muita gente a recorrer à instituição e não temos capacidade para ajudar tantas pessoas. Este sítio é recatado, e por isso as pessoas que tinham vergonha vêm cá”, comenta.

A pobreza está também na classe média: “Existe muita pobreza encoberta, e muita dela da classe média, pois algumas pessoas, de um momento para o outro, ficaram sem nada”, deixa o alerta.

O enfermeiro Bessa assegura que, em Lousada, enquanto puder, a AMI não irá desaparecer: “Continuarei, enquanto eu tiver forças e vontade, pois sai-me do bolso muito dinheiro, uma vez que muitas coisas, que ofereço de coração à AMI, são custeadas por mim. Os carenciados de Lousada podem contar comigo, não lhes viro as costas. O futuro a Deus pertence. Isto não é um projeto político, é um projeto de coração”, assegura.

Vasco Bessa agradece a todos os que “possibilitaram a existência deste grande projeto, nomeadamente a concretização das suas valências de ajuda ao próximo, só possíveis com a solidariedade das pessoas”. Realça a colaboração dos supermercados Pingo Doce, Modelo Continente, E-Leclerc e Intermarché, da autarquia e da população em geral.

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