Despoletada a questão da validade do ensino da cidadania nas escolas, aparentemente por uma pequeníssima minoria, um Pai que terá impedido os filhos de frequentar a respetiva disciplina, invocando objeção de consciência, confesso que o meu primeiro pensamento foi o de ler a situação como uma dessa vulgares desvalorizações de algumas disciplinas, sobretudo daquelas ligadas ao que se convencionou chamar de “Ciências Sociais” , em detrimento de outros que pretensamente aumentam a eficiência e preencham as necessidades da sociedade.
Com o desenvolver dos acontecimentos, resolvi tomar atenção e na verdade se pararmos para refletir a situação é muito mais complexa.
A premissa da desvalorização mantém-se, sobretudo quando vemos as declarações de alguns políticos, descrevendo a disciplina, por exemplo, como um conjunto de orientações para separação do lixo.
Também se assiste à caracterização da mesma disciplina como doutrinária e propondo o enfoque, mais uma vez, por exemplo, nas disciplinas de história e filosofia como não sendo doutrinárias, quando estas são de fato o oposto, sobretudo da forma como são ministradas, aliás como todas as outras. Se existe uma certeza sobre a educação, é a de que ela não é neutra.
No entanto, este fato, o de não ser neutra, não significa que a educação possa estar numa disputa política entre direita e esquerda. A educação é a arma mais poderosa que existe na modelação do futuro dos seres humanos. Uso esta formulação e não a mais corrente, a de dizer futuro das nações, para não cair no cenário onde só há preto e branco, a tal esquerda e direita, mas sim com a opção clara de olhar para o mundo colorido, da vida tal como ela é.
Neste sentido e voltando à disciplina de cidadania, torna-se clara a necessidade da literacia para questões práticas que possibilitem a cada ser humano tomar decisões mais avalizadas. Aqui não pode sequer haver discussão!
Outra coisa é quando se pretende que a disciplina modele escolhas, conforme parece sugerir o despacho 6173/2016 de 10 de Maio de 2016 (o que estabelece a Estratégia de Educação para a Cidadania) que dispõe a determinada altura:
(…) A cidadania, na sua conceção mais ampla integra um conjunto de direitos e deveres que devem ser veiculados na formação das crianças e jovens portugueses de modo que no futuro sejam adultos e adultas com uma conduta cívica que privilegie a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos Direitos Humanos e a valorização de valores e conceitos de cidadania nacional (…)
Aquilo que parece uma evidência, de uma correção política quase poética, na verdade traz com ela vários problemas.
Igualdade, diferença, direitos humanos e cidadania nacional, tudo na mesma frase, sugere uma salada agradável à vista e ao paladar, mas que no fim se torna indigesta.
Sobre que igualdade é que os alunos são levados a refletir, se é o que são?
Diferença? Para haver diferença, tem de haver uma norma, um gabarito, a partir do qual se faz a comparação. Qual é a norma, o gabarito?
Direitos humanos? Sobre que direitos os alunos vão refletir, mais uma vez, se é que vão? Aqueles que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos? Vão decorá-los e ser levados a pensar que é o Estado que os faz cumprir ou uma instituição supra estatal? Os direitos humanos, são os de todos os seres humanos ou de quem é cidadão? O que é ser cidadão português? Quais são os valores a serem “aprendidos”? Quem determina o que são valores e quais?
Há também, professores inclusive, que dizem nada disto ser necessário, porque os professores no seu dia a dia tudo fazem para ensinar os alunos a pensar (????). Ensinar alunos a pensar? Talvez seja um lapso de linguagem, talvez pretendessem, antes, dizer, estimular os alunos a pensar.
O ensino, deveria antes de mais estimular o conhecimento das capacidades de cada um na sua singularidade de modo a cada um conhecer-se suficientemente para ir de encontro à vida que a cada um preenche, à vida boa, aquela que merece a pena ser vivida ao invés de criar autómatos para inserir na linha de produção, onde o único objetivo é o da máxima eficiência, nunca a felicidade, apenas a sua ilusão.
Se a disciplina de cidadania ajuda? O potencial é grande. Mas é necessário o cuidado de que as escolas na autonomia que parecem possuir relativamente ao currículo desta disciplina, o tentem fazer desde logo com o envolvimento de toda a comunidade onde está inserida, num debate constante relativamente às matérias que envolvem valores, seja isso o que for. A uniformização não pode ser um objetivo mas sim o seu contrário. Fornecer ferramentas à reflexão é fundamental, o aumento da perspetiva e da sua quantidade o mandamento!