Canto do Saber – Opinião de Moreira da Silva
O desespero tem tomado conta da população com a intensificação da pandemia. Desespero por motivos sanitários, daqueles que se veem privados dos cuidados de saúde, que viram adiados ou retirados, mercê da emergência de acudir aos doentes Covid, mas também daqueles que sofrem a doença, daqueles que vêm os seus familiares e amigos morrer. Desespero também daqueles que vêm o seu emprego extinguir-se, o seu negócio exaurir-se, as suas expectativas esfumarem-se.
Como gerador de emoções, o desespero, possui uma força quase imparável. Como se sabe, a tomada de decisões a partir de emoções, tem muito mais a ver, com extremos do que com sensatez. São tempos, por isso, de algum desnorte, onde os princípios tendem a ganhar importância na medida em que aparentemente caracterizam a situação de cada um. Uma espécie de integrismo autista.
De forma um pouco aleatória, para não dizer contraditória: liberdades em nome da segurança são cerceadas enquanto são pedidas mais restrições evocando essa mesma segurança; a economia clama por movimento, por apoios enquanto outros descortinam formas criativas de aproveitamento da situação; o país esvai-se, o orçamento de estado anda periclitante enquanto se ouvem revindicações de todo o tipo; clama-se por maior transparência do sistema, por maior responsabilidade política enquanto se fazem acordos com partidos que se dizem anti-sistema , anti muita coisa que a maior parte de nós, pensava pertencer a uma fase anterior do progresso humano .
Pois, muitos, eivados daquele sentimento crítico, tão característico do nosso tempo, diriam “que isto cada vez está pior” , “que é sempre a mesma coisa”, “que é tudo uma cambada disto ou daquilo” e por aí adiante… Mas, atrevo-me a dizer de que se trata apenas daquilo, que permite a todos, tecer todo o tipo de considerações, a Democracia. O ambiente democrático caracteriza-se exatamente por este fervilhar, por este “conflito” latente que alimenta a atividade política.
O problema está em determinar a crise, essa palavra tão gasta, da Democracia. Onde começa e onde para a crise na oposição de opiniões, o antagonismo dos interesses, a instabilidade dos poderes eleitos, a contestação das representações ou a reivindicação de independência dos indivíduos face à ordem coletiva, tudo coisas inerentes ao funcionamento de um sistema de liberdade?
Pode de alguma forma, como Gauchet, falar-se em «crise da democracia», quando uma parte importante dos cidadãos rejeita o princípio das suas instituições e apoia partidos de combate que ambicionam estabelecer um regime alternativo, como aconteceu no passado com o regimes totalitários, cujo revivalismo começamos a ver um pouco por todo o mundo, já com presença no poder em países europeus como por exemplo a Hungria e a Polónia.
Kant na sua obra “O que é o iluminismo”, lembra que a liberdade impõe deveres e ação de quem dela quer desfrutar, a complacência não se dá com a liberdade. Muita atenção aos sintomas e, portanto, pouca complacência, tem que ser tida no destrinçar aquilo que são crises de crescimento da Democracia, daquilo que são ações que pretendem aniquilar a Democracia.
As primeiras fazem com que se ganhem perspetivas que até aí não se percebiam, fortalecendo-se por essa via a Democracia; as segundas levam-nos para um mundo de trevas que começa a ser descrito, por exemplo, nos países mencionados acima, por distintos escritores como Anne Applebaum que vê similitudes nas mudanças que estão a ocorrer com as definições de Hannah Arendt a propósito do totalitarismo.
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