No âmbito do Concurso Municipal LER LOUSADA 2021, este texto venceu o 2º lugar, na categoria 12º ano. Foi escrito pela Ariana Maria Silva Cunha que, nesse ano, estava na turma B. Atualmente, estuda Direito, na Universidade de Coimbra.
O mote para este texto foi a obra Dieta da Poesia, de Afonso Cruz.
O Banco da Poesia
António de Lousada já está reformado, afinal já lá vão alguns anos desde a juventude, altura em que lia as cartas das pessoas à porta dos correios. Continua com a alcunha de Bazulaque, apesar de agora uma cadeira chegar perfeitamente para se sentar. Está sozinho, pois nunca chegou a construir uma família. Muitas coisas mudaram na sua vida, porém o seu amor pela leitura continua intacto. Perdeu, no entanto, a possibilidade de ajudar os outros a decifrar as mensagens escritas, “é o reinado das SMS”, pensa ele tantas vezes. Já não se sente útil.
A sua companhia já não são as pessoas que entram e saem dos correios. São apenas os livros. Bazulaque passa as tardes na sua varanda a ler, admira a criatividade dos novos autores e a capacidade que têm de criar mundos completamente diferentes daqueles a que estamos habituados. Numa das suas pausas, é transportado pelos seus pensamentos ao tempo em que lia as cartas na porta dos correios e reflete o quão diferente tudo é agora. As cartas já não são mais usadas como meio de comunicação, foram substituídas por mensagens instantâneas e do mesmo modo que se sente fascinado pelas novas tecnologias, também sente saudades da emoção e romantismo que as cartas transmitiam. E a caligrafia desenhada, quase obra de arte? Essa quase desapareceu. Tudo mudou em tão poucos anos! Que saudades! António de Lousada reflete sobre esse assunto durante dias a fio. Não entende como esta nova geração prefere ver um filme em vez de ler o livro. Os jovens não sentem desejo pela leitura. Sente-se desolado ao perceber o quão abandonadas as bibliotecas estão.
Decide então ir visitar a biblioteca do seu concelho, para alegrar a vista e consolar a alma. Ao chegar, depara-se com um silencio ensurdecedor, nem uma única alma se encontra lá à procura de um novo romance ou de um novo conto. A emoção toma conta de si e não consegue suster as lágrimas. Num instante, vêm-lhe aos olhos e escorrem pelo
rosto. Tenta recompor-se e regressa a casa. Pelo caminho, não consegue parar de pensar no que pode fazer para trazer de volta a cultura da leitura às novas gerações e relembra o quanto ler trazia conforto e felicidade às gerações mais antigas.
De repente, uma ideia surge na sua cabeça, acelera o passo para chegar a casa e começar a pôr mãos à obra. Rapidamente chega ao seu lar, vai para a varanda e começa a colocar as ideias em papel. O seu plano consiste em pegar no seu estilo literário favorito e aquele que ele pensa ser o mais subestimado pela população, a poesia, e declamar para as pessoas que vão a passar nas ruas. Quem sabe elas não se interessam e buscam por mais? E assim faz.
Dois dias se passam. Bazulaque acorda cedo e começa a pôr em prática o seu plano. O lugar escolhido por ele é o local de onde lhe vêm as melhores recordações da sua adolescência e juventude: os correios. Ao chegar lá, depara-se com o local onde ele lia as cartas, sem ninguém. Começa a remexer na sua mala para ver qual será o poema que irá inaugurar este seu projeto. Encontra autores como Fernando Pessoa, Camões, Florbela Espanca, entre outros. O seu eleito é Fernando Pessoa, mais precisamente o seu heterónimo Álvaro de Campos, com o poema “Todas as cartas de amor são ridículas”.
Rapidamente, consegue atrair a atenção das pessoas que passeiam pela vila, umas curiosas com o que ele está a fazer, outras pensavam que alguma tragédia teria acontecido e iam só por curiosidade espreitar.
Estava tudo a correr às mil maravilhas. Passam-se semanas, cada vez mais pessoas se juntam no local. Já sabem que todos os dias, às 15h, têm uma declamação de poemas para ouvir. Bazulaque recebe inúmeros aplausos e elogios todos os dias. Mas nem tudo corre bem. Há quem ache aqueles ajuntamentos, ali na rua, inconvenientes e ele é obrigado a sair daquele lugar. Para onde irá agora Bazulaque recitar os seus poemas?
Pensa, pensa e pensa, nenhum lugar lhe ocorre. É então que surge a ideia de ir recitar poemas no jardim. Lá ninguém o irá impedir, é um local mais fora da confusão da cidade, e que não causará transtorno na correria de quem vai com pressa. Palavra passa palavra, agora o local de recitar poemas será o Jardim do Sr. dos Aflitos, mais precisamente o terceiro banco a contar desde a Padaria Central. Por sorte do destino, talvez, ainda passa muita gente nesse local, principalmente jovens e o seu público cada vez cresce mais. António está maravilhado com a forma como a sua ideia se vai tornando cada vez maior e começa a escolher os poemas consoante os problemas da vida das outras
pessoas, dedicando-os, mesmo que de forma indireta, a cada um que passa, inspirando-se no seu antigo trabalho de adolescência. O seu propósito com esta nova forma de recitar poemas é ouvir as pessoas, para assim escolher o poema que mais se identifica com elas e com os seus problemas. No fundo, ele receita poemas. No final oferece-os, num pedaço de papel, com a caligrafia desenhada.
Um dia, chega-lhe um rapaz, Tomás, que diz não sentir afeto ou carinho por ninguém, pois perdeu as pessoas que mais amava. Logo de seguida Bazulaque recita um dos seus poemas favoritos de todos os tempos: “É urgente o amor”, de Eugénio de Andrade:
“É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.”
Após recitar este poema, oferece-o a Tomás. Nota que este fica pensativo em relação ao que acabou de ouvir, mas deixa-o ir, deixa-o ir vagueando pelos seus pensamentos.
Dias depois, Tomás volta, espera o final de mais uma tarde de leituras e aproxima se de António de Lousada para lhe agradecer. Assegura a Bazulaque que o poema recitado o fez refletir sobre o porquê de não conseguir sentir afeto por mais ninguém. Como gostou tanto do que lhe foi recitado, procurou mais, mas não só poemas, procurou também contos e histórias que contivessem personagens com quem ele se identificasse. Talvez o pudesse inspirar a evolução fictícia de uma personagem que ele transportaria para a sua vida. Por fim, reconhece que Bazulaque foi a pessoa que lhe abriu as portas e o motivou a seguir em frente e que, além de tudo, lhe concedeu a entrada num mundo com um leque de inspirações gigantesco, que jamais iria explorar, caso a recitação do poema de Eugénio de Andrade não tivesse acontecido.
Bazulaque, emocionado, volta para casa. É outra vez um homem preenchido. A sua vida ganha outra vez sentido. É inegável a felicidade que toma conta de si. A comoção que sentiu ao saber que a leitura estava a ajudar outra pessoa, tal como o tinha ajudado a ele, é algo indescritível.
António só pode sentir vontade de continuar o seu projeto. O banco no qual lê começa a ser apelidado pela população de “Banco da Poesia”. Bazulaque promete a si mesmo só parar de ler quando os seus sentidos não mais o permitirem. Não mais irá parar de resgatar vidas através das suas leituras.
Após a leitura do texto, a Ariana Silva Cunha ” OBRIGOU-ME ” a lê-lo em VOZ ALTA. Como foi bom ouvi-lo. Tudo de bom para ela.