O desejo de renovação, a busca de paz e de reorganização dos cacos do mundo são uma constante no início de cada novo ano. Assim também acontece na passagem para 2024, ano, mais do que nunca, em que a palavra esperança tem de ser mais forte do que a palavra guerra. Nesta perspetiva, a absorção da realidade pela palavra é a única proposta capaz de equilibrar e organizar a confusão em que vivemos.
Fiama Hasse Pais Brandão, em Cenas Vivas, livro publicado em 2000, apresenta, nos seus poemas, um olhar ativo sobre a realidade e uma sensibilidade para o pormenor, que revelam uma disponibilidade para o assombro sobre o que é novo e o que é antigo. O olhar de Fiama aprisiona a surpresa do momento e transforma esse instante em representação visível – preocupação que a poetisa evidencia com a palavra, cristalizando nela a sua forma de organizar o universo. Ela escreve, para se entender e para se compreender, proporcionando-nos um olhar que se estende para além da superficialidade, naquele pressentimento profundo do mistério que habita os seres e as coisas.
No poema «Na Noite» (p. 44), por exemplo, a memória devolve ao eu a fulguração do conhecimento, anterior ao nascimento da própria consciência «de mil galáxias novas». O espaço resiste observando o tempo e a criança que vagueava na noite, num outrora recuperado pela memória. Os deíticos espaciais «aqui e além» inscrevem o poema na realidade de um jardim eterno, onde, perene, o coração do mundo palpita.
Não é só na poesia de Fiama que há uma relação evidente entre a realidade e a palavra, esta mesma conexão permite a cada um de nós refletir sobre o passado e a observação transformada dele. Assim como Fiama, todos nós, pela palavra, vamos inquirindo o mundo e procurando compreendê-lo. A escrita e a leitura abrem espaço a essa compreensão: a linguagem procura, então, um entendimento do ser e do universo.
As palavras revelam um entendimento profundo e uma vibração que nasce de estas estarem em uníssono com as coisas. Tal como em Fiama, é inevitável que sejam as palavras que nos dão acesso ao mundo, permitindo-nos inquirir o real, para o compreender e para tocar o que corre paralelo ao nosso olhar, na suspeita que é aí que podemos tocar o insondável.
Sem as palavras, e os nomes dados às coisas, não existiriam as coisas nem existiríamos nós, tal como somos. É a palavra que organiza a dispersão interior e que potencia a compreensão dos males do mundo pela sua verbalização, funcionando como um mapa iluminador das fronteiras entre o bem e o mal.
E a literatura será o amplo espaço da sua realização.
Conceição Brandão
Professora
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