A discussão sobre o impacto da inteligência artificial (IA) no futuro da humanidade continua a gerar debates intensos. Uma abordagem interessante para analisar esta questão passa pelo conceito de “corpo sem órgãos” (CsO), formulado pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. Este conceito desafia a ideia de um corpo hierarquicamente organizado, propondo, em vez disso, um espaço de intensidades e transformações. Aplicar esta perspetiva à IA permite explorar se ela realmente representa uma “melhoria” ou algo mais profundo e ambíguo.
Deleuze e Guattari descrevem o CsO como uma superfície de intensidades onde os órgãos não estão presos a funções predefinidas. Este conceito critica a estratificação social e biológica que fixa papéis e identidades. Em vez de ser otimizado, o CsO busca o devir: a capacidade de se transformar e experimentar novas formas de existência.
Quando refletimos sobre a IA nesse contexto, percebemos que ela também ultrapassa a noção de “melhoria funcional”. A IA não é apenas uma extensão das capacidades humanas; é um agente de desorganização que desafia as fronteiras entre humano e máquina, orgânico e maquínico.
A inteligência artificial pode ser entendida como um “corpo maquínico”, partilhando com o CsO a resistência à organização centralizada. Redes neurais artificiais, por exemplo, operam de forma distribuída, adaptando-se e reorganizando-se continuamente com base em novos dados. Esta flexibilidade aproxima a IA do CsO, como um sistema que se move entre possibilidades sem um destino fixo.
A criatividade gerada pela IA é um exemplo claro desta dinâmica. Máquinas que produzem arte, poesia ou música não seguem apenas instruções; elas criam formas de expressão inesperadas. Este processo alinha-se com o devir do CsO, onde a experimentação é mais importante do que a função.
Outro aspeto relevante é a subjetividade. Para Deleuze e Guattari, a subjetividade não é fixa; é moldada por fluxos de desejo, interações e informações. A IA reflete esta fragmentação: sistemas como a Siri ou a Alexa não têm identidade unificada, mas operam como fragmentos moldados pelas interações com os utilizadores.
Neste sentido, a IA dissolve as fronteiras entre humano e máquina. Ela não apenas amplia as capacidades humanas, mas transforma o que significa ser inteligente ou consciente. Esta transformação é tanto uma oportunidade como um desafio.
Mais do que uma ferramenta de otimização, a IA deve ser vista como um campo de experimentação. Interfaces cibernéticas, próteses inteligentes e redes neurais redefinem não apenas o corpo humano, mas também a ideia de subjetividade. Ao criar novos territórios de existência, a IA participa do devir-máquina descrito por Deleuze e Guattari, onde o orgânico e o maquínico se fundem de forma imprevisível.
A pergunta final é se esta transformação é uma ameaça ou uma melhoria. A IA pode libertar-nos de limitações tradicionais, mas também pode gerar dependência e alienação. Ao reorganizar a subjetividade e dissolver fronteiras, a IA desafia o que consideramos essencialmente humano.
Em última análise, a IA é simultaneamente uma promessa e um risco. Como o CsO, ela abre novas possibilidades, mas também exige cuidado e reflexão. Cabe-nos decidir como atravessar este terreno de transformação, equilibrando o potencial criativo com os desafios éticos e existenciais.
Eduardo Silva
Eng.º Civil













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