Há quase duas décadas à frente da paróquia de S. Fins, no Torno, o Padre José Augusto está de saída para Paços de Ferreira, a sua terra natal. Sairá, no entanto, sem a alegria da festa em honra da Senhora Aparecida, que este ano, em virtude da pandemia, não se irá realizar.
Conheça os sentimentos que lhe vão na alma e o que guarda de 19 anos de entrega à comunidade da Aparecida.
Como será a Romaria da Senhora Aparecida este ano?
Da mesma forma não será uma romaria. Temos uma série de normas para cumprir, mas eu espero a mesma alegria e vontade, não dessa forma exterior, a que estamos habituados, mas sim de uma forma interior, com uma alegria redobrada. Tudo faremos para que seja vivida com mais intensidade. Não nos vamos juntar uns aos outros, mas espiritualmente vamos festejar e viver de uma forma diferente.
Tudo o que vai acontecer será comedido, vocacionado para esse caminho interior. Teremos a eucaristia no dia 14, às 11 da manhã, no auditório, com as medidas de segurança, e na eucaristia provavelmente faremos a bênção das mães. Acontecerão todos os gestos de espiritualidade e quem vier vai viver e descobrir a forma como vamos celebrar. Não faremos um anúncio oficial, no sentido de as pessoas se aglomerem. Vão acontecer algumas formas diferentes de celebrar e de viver este encontro com a Nossa Senhora. A ermida estará aberta, não permitindo que as pessoas se aglomerem em massa. Teremos uma equipa de acompanhamento.
Em mais de duzentos anos, talvez seja a primeira vez que não sairá a procissão com os andores…
Sim, até a procissão será esse caminho interior, feito de forma diferente. Eu próprio procurarei carregar, não o andor, nem a imagem, mas comigo todos aqueles que quiserem participar nessa procissão. Não de uma forma pedonal, mas sim espiritual.
Como tem sido a reação da comunidade?
Este ano, começamos essa peregrinação interior quase desde o início do estado de emergência. No primeiro domingo em que estivemos confinados, eu lancei um desafio que até hoje se mantém e continuará até ao dia 14: todos os dias, às 6 da tarde, que é a hora em que a procissão sai, rezam a oração da Nossa Senhora Aparecida. Desde esse tempo até hoje, estão a fazer esse caminho interior. Estão a viver a festa de uma forma especial. Todos nós estamos a descobrir, até pela repetição dessa oração, que ela é uma mãe que olha por nós.
A sua saída, após quase 20 anos de sacerdócio na Aparecida, também veio afetar esta comunidade?
Quero explicar como é que isto tudo acontece, para que as pessoas possam perceber o porquê de, ao fim de 19 anos, eu partir para o serviço de outras comunidades. Eu não estava de todo à espera que fosse acontecer agora e, ao mesmo tempo, estava à espera desde o primeiro dia em que me ordenei. Quando nos ordenamos, é para o serviço da igreja, neste caso da diocese do Porto e, naturalmente, devemos essa obediência ao Bispo que a preside. E foi nessa perspetiva que o senhor Bispo me pediu que fosse servir a igreja noutras comunidades, neste caso em Paços, no centro da cidade, em Penamaior, em Lamoso e Meixomil. Tudo surgiu numa conversa neste mesmo lugar. Encontramo-nos aqui. O senhor Manuel Linda veio dizer-me, com um gesto amável, de confiança, de carinho, que era chegada a hora de partir para uma outra missão. Não foi fácil interiorizar isso, mas tornou-se fácil porque compreendo o meu ministério e sei que estamos ao serviço da Igreja. Se ele achou que a igreja precisa de mim noutro lugar, é para outro lugar que eu vou partir.
Como recorda os primeiros passos há 19 anos como pároco nesta freguesia?
Quando me ordenei, não sabia que vinha para Aparecida. Recordo-me que, quando o Bispo D. Armindo me disse que eu ia para S. Fins do Torno, eu não sabia onde era. Ele disse-me que era apenas a quinze minutos de minha casa. E cheguei cheio de sonhos, projetos e vontade de conhecer. Realmente, conheci esta gente fabulosa. Eu espero nunca vir a falar da senhora Aparecida com saudade, por uma razão: metade da minha vida foi vivida aqui. Eu cresci como padre e como pastor com esta gente, o que, naturalmente, torna a situação, no ponto de vista afetivo, dolorosa.
Recordo-me que, quando cheguei, tinha acabado de fazer 25 anos, e vinha de uma realidade muito diferente, do centro de uma cidade, que era Santo Tirso, onde estagiei. Faltava-me aquilo de que eu sempre gostei, o contacto com as pessoas, a proximidade e foi isso que se começou a desenvolver. Recordo-me, quando desci a calçada, do primeiro lugar onde eu entrei. Foi na capela, junto da imagem da Senhora Aparecida. Ainda sei o que lhe disse de joelhos. Não vou torná-lo público, mas foi de facto um amor à primeira vista. Olhando para trás, consigo perceber que ela tomou conta de mim como um filho pequeno que acabava de chegar e, a partir daí, nasceu tudo aquilo que nós conhecemos e que a comunidade permitiu fazer.
Foram muitas as iniciativas culturais, muitos eventos, muitos projetos, como o Santuário. Como foram surgindo essas conquistas ao longo desses 19 anos?
Não me vou conseguir lembrar dos imensos momentos bons. Dos momentos maus, não me lembro de nenhum, pois graças a Deus até esses foram convertidos em momentos bons. Mas, sim, nós vivemos com muita intensidade sempre. Eu sou um apaixonado pela vida e pelas pessoas e, portanto, isso levou a que pudesse juntar à minha volta esta comunidade, com paixão pelas coisas, pelos outros e criamos equipas fantásticas.
Não aceitaria nunca que alguém me dissesse “o senhor padre fez isto ou aquilo”. Eu não fiz nada. O desafio foi mútuo, ora partiu de mim, ora partiu deles, da comunidade, e não só da Aparecida. Tudo foi celebrado como se de uma grande família se tratasse e, por isso, foi possível fazer futebol de praia, exposições, concertos… Foi possível viver a cultura de uma forma muito intensa!
Há também uma coisa muito especial, que a mim me pesa nos ombros, que é a forma como vivíamos a Semana Santa e a Páscoa. Juntávamos duas mil pessoas num pavilhão, como se fosse uma igreja muito nobre para o efeito, onde as três comunidades se juntavam à volta da mesma mesa, que era o altar para celebrar a eucaristia. É o exemplo que eu guardo para mim. Não há maior alegria para um pai e uma mãe que ter à volta da mesma mesa todos os seus filhos e na Semana Santa isso acontecia. Juntávamos à volta da mesma mesa todos aqueles que são das nossas três comunidades. Vivíamos essa semana com muita intensidade e uma paixão que nos marca a todos.
Há muitos projetos e sonhos que se tornaram realidade?
Quando aqui cheguei, depressa percebi com a comunidade que este espaço era pequeno de mais para colher tantos peregrinos, não só nos dias de festa, como as pessoas que durante o ano passavam por cá. E isso despoletou a necessidade. Posso dizer que foi uma coisa absurda neste ponto de vista. Fantástica, porque está bem feita, mas absurda na conceção, na execução e depois na vivência. Nós começamos a obra muito em cima da Romaria. Estamos a falar de vinte dias de obra, que custou 250,000 € e nós abraçamos esta obra sem tempo, sem dinheiro, mas com muita vontade. Felizmente, naqueles vinte dias, conseguimos todos construir a obra e também pagá-la, num esforço naturalmente grande para toda a comunidade, mas a comunidade foi e é generosa. Não houve a necessidade de bater à porta de ninguém para fazer a obra. O dinheiro foi aparecendo, as pessoas perceberam a necessidade e cada um, na sua generosidade, foi trazendo as suas ofertas. Hoje, olhando para trás, eu diria que foi um ato de coragem, sem dúvida.
Sentiu sempre a confiança dos paroquianos?
Sim, confiaram sempre muito em mim, da mesma forma que eu confiei neles. Tudo aquilo que acontecia era vivido neste espírito familiar, de gente que se preocupa com o outro, que vive para o outro e todos vivemos para Jesus Cristo. Foi o que nos marcou durante este tempo todo.
Todos os anos se sentiu a mudança.
Isso vem de mim. Desde pequeno sou irrequieto, preciso de inovação e de estímulo e preciso que as pessoas se inovem, se estimulem. Eu nasci prematuro e até isso me acompanha a longo da vida. E é bom que se perceba que tudo isto acontece porque as pessoas aceitaram essa inquietude, de inovarmos, construirmos e avançarmos para novos desafios. Como eu disse no início, a minha paixão primeira é Jesus Cristo e depois são as pessoas. Estas paixões levam a que queiramos mais qualquer coisa. Quando pensamos que terminou, surge sempre mais um novo desafio, uma nova oportunidade, e as dificuldades são sempre um ponto de partida para uma coisa melhor.
Também se envolveu na valorização cultural…
Eu nunca quis ser presidente do que quer que seja. As coisas funcionam porque somos uma equipa. As iniciativas culturais e o envolvimento associativo (grupos de teatro, o grupo motard, o das artes…) eram de facto um caminho para o despertar da cultura, mas aquela que é a filosofia da humanidade de hoje não é a de alguém que manda e os outros obedecem. Eu nunca gostei de fazer isso. Eu gostei sempre de meter as mãos na massa e chamar outras mãos para amassar o mesmo pão e deu nisto tudo.
Como foi dar conhecimento à comunidade da sua saída?
Se o senhor Bispo me lançou este novo desafio, a “culpa” será minha, mas também é das comunidades onde eu sirvo. Foram elas que fizeram de mim o que sou hoje. Se eu eventualmente fizesse um mau trabalho, o senhor Bispo não se teria lembrado de mim para ir para outro local, portanto a culpa é comum, é partilhada. Eu transmiti às pessoas que esta é a nossa vida dos padres e que as pessoas respeitassem a vontade do senhor Bispo e da Igreja neste novo serviço.
Pedi-lhes duas coisas: tranquilidade e que rezassem por mim, como eu rezo por elas, neste o novo desafio. Não se entende e eu percebo que não se entenda. É-lhes difícil entender que a nossa vida de sacerdote é uma vida ambulante. Eu procurei transmitir a notícia com tranquilidade, mas eu próprio não estava tranquilo, mas também não estava triste. Eu disse às pessoas que nós não nos despedimos dos amigos, levo no coração cada um deles, vão comigo.
Chegou a ceder à emoção?
Normalmente, eu controlo muito as minhas emoções, não as exteriorizo tanto. Não digo que em privado não as sinta dessa maneira. A minha primeira preocupação, por incrível que pareça, foi com os meus. Como é que agora vou dizer isso aos meus, que vou servir noutro sítio? Dizer-lhes que fiquem tranquilos, que serão bem acompanhados pelo padre Filipe, que tomará conta da comunidade e alguém, eu disse, que tem muitas mais qualidades que eu e que vai continuar esse caminho feliz até Jesus Cristo sob a proteção de Nossa Senhora. Não foi um momento fácil, mas necessário.
Quando vai sair?
Eu estarei até ao final do mês de agosto e celebrarei pela última vez com a comunidade. Vou descansar uns dias e tomarei posse nas novas paróquias no dia 20 de setembro.
As emoções poderão chegar nesse momento, na despedida?
Não sei. Repito: eu não me despeço de ninguém, pois os amigos não se despedem. Eu não consigo conceber que a comunidade que eu servi durante vinte anos chore por eu deixar de estar com eles. Eu quero deixar uma coisa melhor que o santuário e todas as coisas que foram feitas. Eu quero ter deixado no coração destas pessoas o coração de Jesus Cristo, este Jesus serve-se aqui como noutro lado qualquer e é isso que a comunidade deve fazer com o senhor padre Filipe, que é perceber que o centro da nossa vida é Jesus Cristo. As pessoas e as formas como as vivemos é apenas um caminho para chegar lá.
Os pilares estão cá?
Sim. Estão. O senhor padre Filipe, quando chegar cá, no dia 6 de setembro, vai encontrar o melhor povo do mundo, é uma família. Não tenho dúvidas de que vai ser muito bem recebido e vai fazer um trabalho notável no seio desta comunidade, que é boa por natureza, que é dada, que é amiga. Eu cheguei aqui muito menino e ainda sinto hoje que me tratavam como um filho. São da minha família as pessoas desta comunidade, que me convidam constantemente para me sentar com eles nas suas casas, com as suas famílias. É uma comunidade sólida e enraizada com a sua fé, disposta a acolhê-lo e a amá-lo, como fizeram comigo, como se eu fosse um filho.
Quais seriam as palavras que escolheria neste momento para expressar os seus sentimentos?
Felicidade. Fui muito feliz nesta terra. Fizeram, fazem ainda hoje, de mim um padre. Que sentido teria ser um padre sem uma comunidade? Só faz sentido porque eles existem. Esta comunidade fez de mim um padre feliz.
Que mensagem gostaria de deixar a todos?
Que continuem a viver e a saborear o que esta terra tem de melhor, e o que ela tem de melhor são as pessoas. Ao padre Filipe, que se entregue de alma e coração. À comunidade, acolhendo o padre Filipe, que ame Jesus Cristo como nós fizemos sempre. Eu estarei por cá. Eu vou para outro lugar, mas não me vou embora. São os tais quinze quilómetros. De facto, é o concelho onde nasci, mas é só isso. Eu saí para o seminário e aqui vivi. Há momentos que nunca vou conseguir esquecer. Não precisarei de olhar para aqui para descobrir o que é ter no colo Nossa Senhora Aparecida e, até fechar os olhos, levarei esse momento comigo para sempre.
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