O célebre comício no salão dos Bombeiros, em 24 de Outubro de 1973 teve Arnaldo Mesquita como um dos protagonistas. Este lutador pela liberdade fez eco da brutalidade com que as forças da ordem carregaram sobre os populares que se deslocaram àquele evento no salão dos Bombeiros Voluntários de Lousada. “Um ato brutalíssimo que foi das coisas mais bárbaras a que assisti em toda a minha vida”, disse ele por mais que uma vez, nomeadamente na entrevista exibida na exposição documental do Arquivo Municipal de Lousada, sobre os 30 anos do 25 de Abril em Portugal.
“Do Quartel do Carmo, no Porto, veio um forte contingente policial que montou uma linha de metralhadoras em frente aos Bombeiros e esperou pela noite. O seu propósito oficial era o de prevenir alterações da ordem pública, mas no fundo o que aquele cenário visava era demover as pessoas de se deslocarem ao comício do Movimento Democrático do Porto”, lê-se nos documentos do espólio daquela exposição.
“O comício estava marcado para as 22 horas. Porém atrasou-se meia hora. Na mesa estavam, entre outros, Arnaldo Mesquita e Clemente Bessa. A sessão começou com os temas do costume naquelas sessões: carestia da vida, insustentabilidade da Guerra Colonial, necessidade de mudança de rumo político. O tom do discurso não poupou a GNR que pretendia intimidar os presentes. Chegada a meia-noite o Comandante da G.N.R. deu ordens para que toda a gente se retirasse”.
Na crónica do jornal A República sobre aquele acontecimento lê-se que “Arnaldo Mesquita tentou argumentar que deveriam dar tolerância, já que o comício havia começado meia-hora mais tarde. Assim não o entendeu o oficial que mandou invadir a sala”. Há relatos de agressões gratuitas, de infrutíferas tentativas para ripostar e acima de tudo muito pânico e fugas desenfreadas de magotes de pessoas.
Com o falecimento do Dr. Arnaldo Mesquita, no dia 2 de Janeiro de 2011 (81 anos de idade), desapareceu uma das maiores referências da região e do país no combate à ditadura. Nascido em 16 de Janeiro de 1930, na Senhora Aparecida, onde fez a instrução primária, rumou a Guimarães, onde, como aluno interno, em estabelecimento anexo ao Liceu Martins Sarmento, dirigido por clérigos, completou o curso liceal. Rumou, então, a Coimbra, em 1947, para iniciar o curso de Direito, abandonando a vocação de professor, por saber de antemão que não seria aceite na função pública devido às convicções comunistas que já professava.
No ano seguinte, envolveu-se ativamente na candidatura presidencial do General Norton de Matos, vindo a filiar-se no Partido Comunista em 1949. Em Coimbra, realizou um importante trabalho de agitação política na Associação Académica e no Movimento de Unidade Democrática Juvenil.
A famigerada tortura do sono
Licenciou-se em 1954, sendo depois convocado para o serviço militar, que cumpriu em Penafiel, Coimbra, Santa Margarida e no Porto, casando então por civil com Maria Alcina Gomes, sua companheira de sempre, da qual teve dois filhos.
No dia imediato ao casamento, foi para o Tribunal Plenário do Porto, estagiando com o advogado Armando Bacelar na defesa do Prof. Ruy Luís Gomes, Virgínia de Moura e outros elementos do Movimento Nacional Democrático, acusados pelo regime de antipatriotismo, incorrendo numa pena até 20 anos de prisão. Encarregado de proceder a todas as anotações relevantes durante o processo de julgamento, acabou preso pela PIDE, em 1955, por não facultar os apontamentos, entretanto remetidos a advogados influentes. Esteve detido durante seis meses na Cadeia do Aljube.
Em 1959 foi novamente preso, sob a acusação de participação no 5.º Congresso clandestino do PCP e de ser dirigente do partido, incorrendo em 12 anos de prisão. Neste período foi submetido à famigerada tortura do sono, durante 160 horas consecutivas, com interrogatório diário de várias horas, durante duas semanas sucessivas. A experiência, muito traumatizante, está relatada no livro de poemas “Amanhã Virás”, escrito na prisão. Acabou absolvido, em 1960.
Arnaldo Mesquita conquista especial notoriedade em 1964 como defensor de Maria Piedade, a quem a PIDE tinha aplicado as chamadas “medidas de segurança”: ficaria presa como represália enquanto o marido, Joaquim Gomes, evadido de Peniche com Álvaro Cunhal, não fosse recapturado. Liderando um amplo movimento de contestação de juristas e intelectuais, alguns mesmo ligados ao regime, e a denúncia no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, conseguiu a libertação da sua constituinte, suscitando a fúria da PIDE que o prendeu pela terceira vez. O apoio de Francisco Salgado Zenha e do seu defensor Armando Bacelar foram determinantes para a sua absolvição, mas não impediu a grave deterioração do seu estado de saúde.
Mesmo assim, manteve-se no exercício da advocacia e o seu escritório, no Porto, foi sede de humilhados e ofendidos do fascismo. Viria, aliás, a alcançar retumbante êxito judicial, com a jurisprudência de as declarações dos presos políticos serem nulas sem a presença dos seus advogados.
Os amanhãs ainda cantam…
Com o “25 de Abril”, foi eleito para a Assembleia Municipal de Lousada durante vários mandatos, destacando-se ali pelo seu carácter persistente e combativo.
Arnaldo Mesquita era um virtuoso poeta que publicou “Amanhã Virás” (1971), “70 Poesias Breves” (1987), “Em Tempo de Fascismo” (1987), “Sejam Amplas as Janelas ” (1999), “Aquele” (2000) e “Dispersos” (2001), todas edições de autor; “As Duas Vozes” (2003), Edições Avante” e “Aves Ledas” (2006), “À Mulher” (2008) e “Nascido no Monte” (2009), edições da Câmara Municipal de Lousada.
O Município de Lousada condecorou-o, em Julho de 2008, com a Medalha de Prata de Mérito Municipal, pelo seu percurso como resistente antifascista, advogado e poeta, e em 9 de Maio de 2009 foi homenageado pela União dos Resistentes Antifascistas Portugueses.
Quando, no domingo dia 2 de Janeiro (de 2011), eram quase 17h00, o seu corpo, coberto pela bandeira do PCP, vindo da capela de Cedofeita, onde esteve em câmara ardente, chegou ao cemitério do Torno, eram muitos os populares que aguardavam, para a última despedida. O elogio fúnebre, lido por Albano Nunes, do Comité Central do PCP, resumiu o percurso coerente, corajoso e combativo de Arnaldo Mesquita, a sua estatura ética e a sua fortaleza ideológica. “São de um poema seu as palavras que dizem que um homem novo ou velho/saiba manter-se de pé/quanto mais dobre o joelho mais deixa de ser quem é/e de dobrado nem se vê. Mensagem luminosa, palavras particularmente certeiras e oportunas num momento em que procuram roubar-nos conquistas e direitos que tanto custaram a alcançar”, referiu Albano Nunes.No Correio do Porto, edição de 1 de janeiro de 2011, Luís Ângelo Fernandes escreveu assim a propósito do adeus a Arnaldo Mesquita: “Na laje sepulcral, o epitáfio, já inscrito há vários meses, exalta: «Paz no mundo, fascismo nunca mais», rematando com Karl Marx: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades». Arnaldo Mesquita, fiel a si próprio. Os amanhãs ainda cantam. Até à eternidade.”