“Prepara-te miúdo, domingo és tu e mais dez”
Segredos da Bola – por José Carlos Carvalheiras
Em 1986, o Lousada lutava galhardamente para não descer da 3.ª Divisão para a qual havia subido na temporada anterior. Moreira, o guarda-redes da equipa e titular da baliza, apanhou o 5.º cartão amarelo na 25.ª jornada, ficando impedido de entrar no jogo seguinte, com o Oliveira do Douro. O suplente era um jovem lousadense de 18 anos, José Manuel Pereira Ventuzelos. O treinador era Taí Laranjeira, que lhe disse logo ali, assim que Moreira viu o cartão amarelo: “Prepara-te miúdo, domingo és tu e mais dez”. O guarda-redes dormiu mal nessa semana. Mas portou-se muito bem na estreia, de tal modo que ficou titular até ao fim do campeonato.
José Manuel Pereira Ventuzelos, de 54 anos, foi um ex-guarda-redes com muitas conquistas, nomeadamente no Nogueira (onde terminou a carreira), no Caíde de Rei, no Alpendorada, no Cinfães e na Associação Desportiva de Lousada onde se estreou aos 18 anos. Durante a sua longa carreira presenciou e viveu inúmeras peripécias, manhas e artimanhas, que contou nesta nova rúbrica d’O Louzadense e cujo resumo pode ser visto na página do Facebook.
A sua carreira começou aos 11 anos, na época de 1979/80, na categoria de Iniciados, na Associação Desportiva de Lousada. “O meu primeiro treinador foi o António Miguel e depois o Rui Sequeira, o Dr. Jorge Magalhães e o Dr. Mário Fonseca, respetivamente nos juvenis e nos juniores”. Ventuzelos declara que “eram tempos mais difíceis que os atuais porque havia escassez de equipamentos e materiais; eu treinava e jogava com calças de pijama e só tive umas luvas do melhor material em 1989, quando o Joaquim Teixeira me trouxe umas que tinham sido do Alfredo, do Boavista”.
Estreou-se na época de 1985/86, sob o comando do treinador amarantino António Carlos Laranjeira Lima, que ficou famoso no futebol com a alcunha Taí. “O Lousada tinha subido à 3.ª Divisão Nacional (Série B) na época anterior. Não foi uma adaptação fácil a um escalão com 16 equipas de grande valia, por isso o Lousada teve algumas dificuldades e bateu-se até ao fim para não descer”, começou por contar o guarda-redes.
“O treinador que começou a época foi o (João) Melo, que tinha sido guarda-redes da Académica e do Benfica, mas não teve sorte e foi substituído pelo Taí. O Moreira era o guarda-redes titular do Lousada. Eu era o suplente porque o Alberto tinha saído, por motivos pessoais” refere Ventuzelos.
“Não dormi bem durante a semana”
A oportunidade do jovem lousadense se estrear aconteceu “quando o Moreira viu o quinto cartão amarelo, num jogo com o Oliveira do Douro, o Taí virou-se para mim e disse «prepara-te miúdo que domingo és tu e mais dez». Eu fiquei nervoso, nem dormi muito bem durante toda essa semana, que antecedeu o jogo contra o Oliveira do Douro, no nosso campo. Faltavam quatro jornadas para acabar o campeonato e não podíamos perder, para não descer de divisão. O jogo correu-me bem e empatamos a zero. No jogo seguinte, também em casa, voltei a ser titular e ganhamos ao Ovarense (1-0), a seguir defendi tudo em Vila Real, num jogo onde fomos muito atacados. Mantive a baliza invencível. Na última jornada recebemos em casa o Cesarense e vencemos 3-2”, recorda o antigo guardião.
“Foi uma estreia inesquecível e até o Cunha «Pequenino», que era o presidente da ADL, pegou em mim ao colo”, afirma com um sorriso de saudade e alegria. Também não se esquece da surpresa feita por um adepto lousadense durante um almoço de confraternização no restaurante Brazão: “o Mário, que na altura era condutor do camião de recolha do lixo, em Lousada, deu-me uma nota de mil escudos, que na altura era bastante dinheiro para um jovem que ganhava quatro contos de reis e isso sensibilizou-me muito e ainda hoje me recordo disso com muita estima”.
A ida para a tropa nesse ano de 1986 não incomodou a carreira do jogador, que foi titular da baliza lousadense, mesmo treinado somente à sexta-feira à noite, o treinador Cabral apostou em Ventuzelos.

Coragem e pontos “a sangue frio”
Do ponto de vista técnico e tático, Ventuzelos foi um guarda-redes muito competente na pequena área da baliza: “A minha especialidade era voar”. Mas reconhece que fora dela não era tão capaz, sobretudo no jogo aéreo e explica porquê: “eu fui treinado para defender entre os postes, naquele tempo não era muito necessário jogar com os pés, e além disso eu tinha sempre excelentes defesas centrais que faziam bem o serviço nas bolas altas”. Neste aspeto particular destaca Carlos Jorge Pinto, Vicente, Vieira, Albino Lopes, entre outros.
Coragem e entrega total ao jogo eram características de José Ventuzelos. “Isso é verdade”, reconhece o ex-jogador, “mas também por isso senti alguns dissabores, com lesões, como foi o caso num jogo de preparação com o Paços de Ferreira, o avançado Edgar isolou-se, eu fiz-lhe frente e levei uma patada que me fez uma ferida no rosto. Tive que ser cozido com nove pontos pelo massagista Daniel. Noutra ocasião também levei quatro pontos no nariz, num jogo com o Freamunde. O Lousada teve sempre bons massagistas e enfermeiros. Havia um que se apresentava de gravata, o Ramiro Couto, que tinha estado no Boavista ”.
Ainda sobre o massagista Daniel, “lembro-me de como era boa a vitamina que ele nos dava quando ainda era júnior mas já jogava pela equipa B do Lousada. Era nada mais nada menos que marmelada com vinho do Porto. Antes disso, o nosso suplemento era chá de limão e mel que era dado pelo roupeiro Babo”, recorda Ventuzelos. Mais tarde surgiram as injeções e alguns afligiam-se com isso: “entre os jogadores, ficou famosa a vitamina V Supra, que era certo dia passou a ser injetável, o que foi uma novidade para nós. Fazia impressão a alguns, até a mim. O capitão Lopes, da Lixa, foi o primeiro e quando saiu do gabinete médico eu perguntei-lhe se tinha sido fácil e ele nem chegou a responder, desmaiou para o lado. Mas felizmente não foi nada de mal. Eu tomei a injeção no rabo e andei três dias sem puder sentar direito”.
De enaltecer e sorrir são as recordações vividas no Alpendorada e no Cinfães: “foram anos inesquecíveis, com subidas de divisão e ambientes espetaculares. Saí do Alpendorada algo pesaroso porque o presidente queria oferecer-me o triplo do que estava a ganhar, mas eu já me tinha comprometido com o João Monteiro, que era o treinador do Cinfães”, confessa.

Prémio de carreira desportiva
Acerca de vencimentos e honrar compromissos, José Ventuzelos sublinha que “houve uma altura em que o Lousada ficou a dever-me seis meses, mas os jogadores de fora recebiam. Eu podia ter metido o clube em tribunal, como outros fizeram, mas nunca o fiz”.
Aos 34 anos, aconteceu a ida para o Caíde de Rei Sport Club: “o José Joaquim da Cunha convenceu-me numa altura em que eu era profissional da Brisa e não pensava em continuar a carreira de futebolista”. Ainda assim, dois anos depois voltou ao Lousada: “sim, na época de 1992/92, curiosamente com o treinador que me tinha lançado a titular, o Taí Laranjeira, mas desta vez o Luso, que foi outro excelente guarda-redes, é que foi quase sempre titular”.
Antes de pendurar as chuteiras, que é como quem diz, colocar um ponto final na carreira, este nogueirense ainda defendeu as cores do clube da sua freguesia, o Nogueira, ao serviço do qual conquistou a Taça da AFAL (Associação de Futebol Amador de Lousada). Na sequência disso, como cereja no topo do bolo, recebeu o «Prémio Carreira», atribuído pelo jornal desportivo «Amador», do fotojornalista Carlos Gonçalves.
Pelo seu caráter humilde, José Manuel Ventuzelos tanto fala de golos sofridos e de defesas impossíveis com a mesma honestidade: “sofri frangos, como todos os guarda-redes, tive deslizes que custaram golos, mas há um que me ficou atravessado pela falta de concentração. Aconteceu num jogo com o Infesta, salvo erro na época de 1991/92, no seguimento de um penalty a nosso favor, já quase no final do jogo, quando tudo indicava que a vitória não nos iria escapar, o que era sempre muito difícil com o Infesta, o Caneco acertou no poste e no contra-ataque eles apanharam-me desprevenido e marcaram”.
Na vida social, além de funcionário da Brisa (desde 1992), José Manuel Ventuzelos defende várias balizas ou várias causas e entidades, pois participa civicamente em várias frentes desde há muitos anos. Foi membro de comissões de pais escolares e integrou o Conselho Geral do Agrupamento de Escolas Lousada-Norte. Entre 2017 e 2021 foi membro da Assembleia de Freguesia da União de Freguesias de Silvares, Pias, Nogueira e Alvarenga. É membro ativo da vida paroquial e associativa de Nogueira, onde reside, fazendo parte da Comissão Fabriqueira. É secretário da Assembleia Geral da Associação de Cultura Musical de Lousada, secretário do Conselho Fiscal dos Bombeiros de Lousada e presidente da assembleia geral do Rancho Folclórico de Nogueira.
Todas as semanas desvendamos “segredos da bola”

O mundo do futebol está cheio de vivências curiosas, algumas delas melindrosas e outras caricatas, mas que passam despercebidas do público. Nesta nova rúbrica d’O Lousadense pretende-se apresentar relatos que trazem a público a essência do futebol de outros tempos, pela voz de protagonistas do desporto-rei. Todas as sextas-feiras lançamos um vídeo no Facebook, com a entrevista a um convidado, que na edição seguinte d’O Louzadense é dada à estampa. O convidado para a estreia desta iniciativa foi o histórico guarda-redes Ventuzelos. Na próxima semana, o convidado é o meinedense Tonanha.
Esta iniciativa tem o patrocínio da Concept Village e do pelouro do Desporto do Município de Lousada, com apoio da Adega de Lousada, Associação Vidas em Cena e Ladec Eventos.