Estamos em agosto, mês de férias por excelência, em que as festas, por todo lado, se multiplicam. Mesmo naquelas em que se introduz uma maior sofisticação, não falta a procissão. Se outros aspetos da festa possam, eventualmente, aqui ou ali, ser descurados, os que dizem respeito à procissão dificilmente o serão. O catolicismo despendeu muito esforço e tempo para integrar todo o tipo de celebrações ancestrais e, portanto, efetivar a conversão ao seu credo, para prescindir de um momento tão essencial de exposição da hierarquia eclesiástica.
Tão certo como a realização da procissão é, por estes dias, a presença do político, apesar da laicidade reivindicada, mas não praticada. Por pudor ou, simplesmente, porque não lhes é permitido, lá seguem imediatamente atrás, raramente ao lado, das entidades eclesiásticas presentes, que desfilam com as vestes correspondentes à sua dignidade de modo a serem reconhecidas por todos por aquilo que representam. Mas, o político está presente no cumprimento dessa espécie de mandamento que obriga todo aquele que aspira ao poder a mostrar-se em todo e qualquer evento: ele tem de mostrar deferência pelo povo que, encantado por solene presença, a retribui. Por conseguinte, a comparência numa procissão, para estas personagens, mesmo admitindo um ou outro caso de bairrismo e/ou devoção, não sai muito desta motivação. O que interessa é a presença e a foto para o “post” imprescindível para que mesmo os que não assistem possam valorizar.
Com efeito, esse trabalho – a que muitos chamam “política” – tem de ser feito. Digno de reprovação será mesmo a promiscuidade entre poder religioso e poder secular : nada que importe ao povo sedento da bênção, quer de um, quer do outro. No entanto, escapa ao político a especificidade da participação num evento como a procissão. Aquilo que, de algum modo, é intuído pelo político moderno que não possui o alcance necessário para otimizar os resultados obtidos com tal participação. Bastaria olhar para a Igreja, que nesse quesito leva séculos de experiência, tendo aprimorado a arte de evitar – controlar – as massas.
Numa procissão, todos esperam a bênção de todo aquele a quem reconhecem o direito a da-la. Este reconhecimento inibe o espetador de se aproximar do estado semelhante ao da massa. Antes, esse estado é fixado em vários níveis de contemplação em simultâneo. Não há equilíbrio entre estes níveis, tampouco qualquer junção num só. O Padre, o Bispo ou outro elemento decorado com outra categoria hierárquica da Igreja permanece separado do povo que o coloca acima de si. Quanto mais crente for aquele que assiste, maior é a veneração que vota a tais indivíduos, os quais estão, assim, mais acima e são mais santos do que ele. O objetivo é precisamente o da veneração coletiva, porém, sem comunidade, o que poderia levar a ímpetos sentimentais e ocorrências fora do controlo. Reforça Elias Canetti [1], que mesmo a veneração é graduada, vai subindo de nível, por degraus conhecidos e esperados, à medida que se realiza a procissão. Todavia, não há subitaneidade, tudo se passa de forma suave e imperturbável, alcança o seu clímax e volta a descer lentamente.
É, justamente, este evitar da formação da massa cujo comportamento se torna imprevisível que o político tem a aprender com a Igreja. Por outras palavras, o político, tendo, também ele, necessidade do tipo de veneração que lhe possa garantir o voto, consegue-o não à custa da formação da massa, mas sim no reconhecimento que lhe é outorgado pelo potencial votante. Que melhor maneira ele tem de reivindicar essa veneração senão com uma preparação mais apropriada para participação em eventos deste tipo, aproveitando o lastro que quem já é venerado?
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1. Canetti, E. (2017) Massa e Poder, Cavalo de Ferro, Lisboa.
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