por | 2 Out, 2024 | Sociedade, Uncategorized

Os toques de pegar e largar o trabalho

SONS EM VIAS DE EXTINÇÃO

“Há sons que desaparecem com o avançar dos tempos”, diz com nostalgia o lousadense António José Bessa Ferreira, de 76 anos. Dá como exemplo a sineta que se ouvia aquando da cerimónia de apresentação da hóstia (pão) e do cálice (vinho) durante a missa. Parece que se extinguiu por não haver quem a toque. De facto, há sons que já não se ouvem naturalmente e só se podem ouvir em gravações ou imitações. Outros estão em vias de extinção. Um deles é o toque de campainhas ou sirenes para pegar ou largar o trabalho, que constitui um fenómeno sociológico com uma grande amplitude de significados sociais e laborais.

A marcação dos turnos do trabalho através de sirene, em Lousada, caiu em desuso. O mesmo acontece por onde a modernidade avança, atropela e abafa as sonoridades tradicionais. O toque de pegar e largar indicava o início laboral (às 8 horas da manhã), depois a pausa para almoço (ao meio-dia e trinta), o toque para o turno da tarde (às 14 horas) e o final da jornada de trabalho (às 18 horas). Os horários eram marcados pelo toque sonoro e não pelos relógios de pulso ou de parede. O relógio era um bem de luxo e decorativo, não se levava para o campo ou para a fábrica. Mas o principal motivo dos toques sonoros para pegar e largar o trabalho tinha a ver com o ruído de máquinas e engenhos, que faziam os operários trabalharem de ouvidos tapados. Ou pelo menos deviam. Era preciso um som potente para os informar das horas.

Nuns casos era usada uma gaita ou uma sirene, mas também havia campainhas, sinetas e afins. Era um sinal que informava não apenas os trabalhadores de determinada fábrica ou complexo industrial, mas também a população das redondezas, indicando que era hora de mudança de ritmo, de outros afazeres, do fim ou início de tarefas, de pôr o almoço na mesa ou aprontar os filhotes para a escola.

“Havia quem orientasse a sua vida em função dos toques de determinada sirene, mesmo sem ter nada a ver com a respetiva fábrica”, refere António Ferreira. Este assumido apreciador das tradições locais e das coisas da memória coletiva diz que não precisa de despertador, pois acorda com o som de uma sirene industrial.

António Ferreira

Com nostalgia e gosto, António Ferreira refere que “a única sirene desse género que funciona em Lousada, está na serração de Varzielas (Cristelos), que se chamou Serração Teixeira e hoje dá pelo nome Lumite, de Luís Miguel Teixeira Oliveira”.

Este comerciante de madeiras mantém a tradição bem viva e audível, com os toques da sirene a marcar o avançar do dia e a anunciar as mudanças de tarefas laborais e práticas sociais.

Além desta, só há a dos Bombeiros, mas para fins diferentes. Hoje em dia, com os telemóveis e os pagers, é de crer que também essas sirenes acabem por desaparecer. A comunicação é cada vez mais silenciosa e discreta.

Para António Ferreira, o chamamento da sirene é uma característica presente na sua vida desde sempre. “Gosto disso e é como se fizesse parte de mim, das minhas raízes”, salienta. É natural de Paços de Ferreira, onde viveu apenas três anos, pois foi muito cedo viver para o industrializado Vale do Ave, onde conviveu de perto com a tradição dos toques para pegar e largar o trabalho.

“A vida era guiada pelos toques das sirenes das fábricas e quando vim para Lousada há 53 anos também havia disso por aqui. Não eram muitas, pois Lousada não era nem de perto nem de longe industrializada como o Vale do Ave, claro”.

A SIRENE DA FAMO

“Lembro-me muito bem da sirene da Famo, que era das mais famosas, devido à sua sonoridade peculiar e à potência”, afirma António Ferreira. De facto, na Famo, Fábrica de Mobiliário Metálico, existiu uma sirene de pegar e largar o trabalho, desde o tempo do fundador daquela indústria, Jaime Pinto de Moura, na década de 1950. Este industrial, que foi pai de Jaime Nunes de Moura, veio da Longra (Felgueiras), onde se iniciou na indústria e de lá trouxe a ideia da sirene laboral.

Disso dá conta nas suas publicações Armando Pinto, um conhecido felgueirense que já exerceu funções no Centro de Saúde de Lousada (onde chefiou em 2010 a UAG Unidade de Gestão dos Agrupamentos de Saúde da região) e que inclusive estudou no lousadense Colégio Eça de Queirós, na década de 1970.

Curiosamente, o seu pai, Joaquim Pinto, era um eletricista bastante engenhoso e foi o autor de uma das sirenes mais famosas da região e que inspirou a construção da sirene da Famo. No seu livro “Memorial Histórico de Rande e Alfozes de Felgueiras”, Armando Pinto descreve que o engenho sonoro da Longra “era duplo, com o seu respetivo motor entre duas sirenes de cada lado, presas ao mesmo veio e com sons diferentes que se misturavam, fortaleciam e complementavam no brado produzido”.

Diga-se que Joaquim Pinto, autor da Sirene da Metalúrgica da Longra, foi galardoado em 1959 com o Prémio da Associação Industrial Portuense.

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