Quem nunca se sentiu perdido nos corredores de uma burocracia impessoal, confrontado com regras absurdas ou um poder invisível e arbitrário? As narrativas de Franz Kafka, povoadas por agrimensores que não medem, acusados sem crime definido e funcionários entrincheirados em desvãos poeirentos, parecem captar uma angústia singularmente moderna. Mas foi Walter Benjamin, filósofo e crítico alemão, quem ofereceu uma das chaves mais perspicazes para decifrar a relevância duradoura destes labirintos literários.
No seu ensaio sobre Kafka, Benjamin argumenta que o escritor de Praga não estava apenas a descrever neuroses individuais, mas a mapear a persistência de forças arcaicas no seio da modernidade. O mundo de Kafka, para Benjamin, é um onde a “pré-história”, com as suas leis não escritas e culpas ancestrais, continua a operar secretamente sob a fachada da organização racional. As figuras de autoridade – sejam os funcionários do Castelo ou os pais opressores nas suas histórias – são retratadas como simultaneamente decrépitas e omnipresentes, parasitando a vitalidade daqueles que lhes estão subordinados. A anedota de Potemkin, assinando documentos como “Chuvalkin” num estado de torpor depressivo, serve de alegoria perfeita para este poder ausente, mas decisivo.
Esta visão ressoa profundamente com a nossa experiência contemporânea. Vivemos cercados por sistemas – tecnológicos, económicos, administrativos – cuja complexidade muitas vezes nos escapa e cujo poder parece anónimo e inquestionável. Sentimo-nos responsáveis por falhas sistémicas, enredados numa espécie de culpa difusa, semelhante à do Josef K. de “O Processo”, que é condenado “não só sem culpa formada, mas também sem o saber”. Benjamin sugere que esta opacidade não é acidental; deriva de um “esquecimento” fundamental – esquecemos as origens, as estruturas subjacentes, e nesse esquecimento, o poder entrincheira-se e as velhas hierarquias persistem sob novas formas. Odradek, essa estranha criatura feita de restos e linhas soltas, torna-se o símbolo da forma irreconhecível que as coisas assumem quando abandonadas nesse limbo da memória.
Mas a leitura de Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio. Aponta também para formas subtis de resistência ou de encontrar sentido. Não através de grandes revoltas, mas talvez na atenção minuciosa – a “prece natural da alma” –, na valorização do gesto humano que escapa à pura funcionalidade, ou na prática do “estudo” como forma de reaver alguma agência, como Sancho Pança que, ao ler, acaba por domesticar o seu “demónio” Don Quixote.
Revisitar Kafka pela lente de Benjamin é mais do que um exercício académico. É uma ferramenta crítica para pensar o nosso próprio tempo, para questionar as estruturas de poder que nos governam e para refletir sobre as formas como o passado continua a moldar, muitas vezes invisivelmente, o nosso presente. A obra de Kafka, iluminada por Benjamin, permanece um espelho incómodo, mas necessário.
Por Eduardo Silva para Canto do Saber – O Louzadense
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