por | 28 Out, 2022 | Canto do saber, Opinião

A propósito das incompatibilidades dos políticos

Canto do saber 49 – Eduardo Silva

Há muitos anos, era eu muito jovem, 19 anos, mas já com uma reputação profissional que me granjeava uma série de convites para mudar de empresa, acedi a ouvir um desses convites. O projeto interessou-me e instado a informar qual o salário que pretendia usufruir, falei num número, do qual, apesar de alguma insistência para negociação, não me afastei. Esse valor correspondia a cerca de 4 a 5 vezes o vencimento que auferia nessa altura. Foi aceite com o seguinte comentário: “Aceitamos, porque demonstrou saber cuidar dos seus interesses. Se não soubesse tratar deles, não saberá tratar dos nossos”. 

Vem isto a propósito das limitações que se levantam, sobretudo, aos políticos para desempenho de cargos oficiais. O grau de suspeição e criação de incompatibilidades é crescente. De tal modo, que na política dificilmente caberão outros que não os “carreiristas” sem qualquer experiência para além da dos corredores do poder, portanto, sem vivência do mundo. A sensibilidade para o exercício do poder chega-lhes pelo exemplo dos que o possuíam antes deles, tomado como receita: no seu discurso e na sua ação nada há de novo – há que preservar o poder que é, em simultâneo, o seu modo de vida – tudo é previsível. Soma-se no quotidiano o efeito das redes sociais, com a preocupação com este ou aquele comentário, cujo significado político é, normalmente, nulo. Consequentemente, a qualidade do político e da política, está bom de ver, decresce abruptamente.

Quase invariavelmente, a preocupação é com a envolvente ao político, tudo é escrutinado: família, amigos, conhecidos, religião, associações a que pertence ou em cujos eventos terá participado, orientação sexual e afins, o que fez e faz ou deixou de fazer, etc. Pelo caminho, o rasto de desconfiança, de receio, de mesquinhez, vai atingindo essa envolvente: um político pode ter um efeito nefasto. Tudo em nome da propalada transparência, tão na moda. 

A política enquanto tal, como reconhece Han (filósofo) e Schmitt (jurista) é uma ação estratégica, exigindo uma esfera secreta. Embora, nos nossos dias, por vezes, seja difícil distinguir política de gestão e administração, a verdade é que a política se distingue destas, não sendo um mero trabalho. Onde não há estratégia, há apenas estatísticas, inquéritos e todo o tipo de coisas enfadonhas, que corrompe a política numa tecnocracia. A política exige segredos e a boa gestão dos mesmos. O imperativo da transparência implica proximidade absoluta e permeabilidade, exposição e exibição. Tudo está exposto, cada indivíduo é o seu próprio objeto publicitário sendo medido pelo seu valor de exposição. Desaparece o valor do culto, que não está no ser que se expõe, mas no ser que é.

Percebe-se claramente, que a política deverá ser deixada, mesmo que a profissionais da mesma, a todo o tipo de indivíduos que possuam a capacidade de exercer o poder, trazendo a política para o centro da atuação de governo. Isto, só se faz com pessoas com uma experiência do mundo e das suas dinâmicas, adquirida, justamente, na defesa dos seus interesses: a tal máxima “se não souberes defender os teus, não sabes defender os nossos”. Contudo, não confundamos as coisas, a direção é  a da politização.  Não é a do primado da técnica, colocando técnicos de exceção à frente das respetivas políticas, portanto, caindo na tecnocracia que é algo de absolutamente insensível ao mundo. 

Concluindo, há que controlar determinado tipo de ações de exercício do poder e não a envolvente aos políticos. O clima de suspeita gerado à volta destes e da política é absolutamente insustentável, afastando os competentes para o exercício do poder – os fortes -, atraindo os da espuma da sociedade, muitas vezes – os fracos ressentidos – que nunca couberam noutro lugar, que, frequentemente, norteiam a sua conduta como tal. Cabe a todos nós, cidadãos, fazer este exercício e não cair na armadilha da transparência que mais não é do que uma forma de nos tornar idênticos, formando uma massa disforme, despojando-nos das características que fazem de nós, indivíduos – cada um como um ser único.  

1 Comment

  1. Fontes

    Muito bom e atual. Parabens ao autor.

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