Opinião de Eduardo Moreira da Silva
“A proposição de que a existência está acima de uma existência justa é falsa e ignominiosa, se a existência não significar nada além da mera vida”
De Walter Benjamim (escritor/filósofo), como poderia ser de muitos outros com o mesmo sentimento, parto numa viagem, que no seu início, passa por investigar a relação entre lei e justiça, sendo que existe a possibilidade de definição para o conceito de lei, mas nunca para o conceito de justiça. Quanto a este último, seria talvez como tentar definir o sentido da vida, todos possuem a sua ideia sobre o que é, mas essa ideia jamais será universal. Não deixo, contudo, de investigar, o apelo ao incalculável na tomada de decisão, naquilo que muitos designam como, aplicação da justiça. O momento em que o julgamento de quem julga não se subordina a uma norma. Talvez não tenha, do mesmo modo, uma explicação, mas é com certeza uma formulação digna de Agostinho.
No estudo desta relação lei-justiça faz-se intervir a força, que nas palavras de Jacques Derrida (filósofo): “a lei é sempre uma força autorizada, uma força que se justifica ou tem justificação para se aplicar, mesmo que essa justificação possa ser julgada de outro lugar como injusta ou injustificável.”
A viagem continua, a paragem, induzida pela ação da força na sua relação com a lei, torna-se obrigatória na análise da autoridade do estado, da violência implícita nas leis, nas instituições e nas ações quer individuais quer coletivas. É mesmo de violência implícita que se trata, aquela que oprime sem recorrer, de facto, à violência física, num constante deambular entre meios e fins. A natureza da violência, a distinção entre lei natural e positiva, a diferença entre violência sancionada e não sancionada. A razão da aceitação de ações aparentemente não violentas pelo Estado, como é o exemplo do direito à greve, que abre todo um campo de para a discussão da desobediência civil, pela óbvia analogia.
O papel da polícia como instituição onde é suspensa a relação entre violência legislativa e a violência que preserva a lei. O dos parlamentos, que se encontram em decadência, vítimas do abandono do combate político em detrimento do compromisso. Da necessidade de violência no processo político, sem a qual não existe, isto é, a ação torna-se nula. A distinção da não violência no tratamento de conflitos entre particulares, que só existe no caso de conflito relacionado com bens. O contraponto é observado com aquele que se desenrola entre classes ou entre nações, este último em que se percebe o papel do diplomata raramente se prender com alterações a sistemas jurídicos, mas de maneira intensa, encontrar soluções caso a caso, em nome dos estados que representam de forma pacifica e sem contratos. A paragem é longa, mas essencial, para entranhar conceitos que serão uteis na análise da desobediência civil.
O caminho é retomado, mais uma paragem, que é no local de exame ao dever de cumprimento das leis da polis. O teste é feito, tendo em mente a questão da desobediência civil, uma espécie de prova à existência de sentido de justiça para além das leis essenciais à existência da polis. O resultado é o de que a existência de sentido de justiça é transversal ao longo dos tempos e sempre em consonância com as leis da polis, acordo fundamental para a harmonia da cidade.
O recuo no tempo vai a Antígona (do dramaturgo Sófocles), que mesmo achando injusta a decisão de não enterrarem o irmão, reconhece a lei e dispõe-se a ela aceitando a sua punição. Mas sobretudo em Críton, que para o fim proposto para este trabalho, não pode ser desligado da Apologia de Sócrates, em que Sócrates não aceita a oferta de fuga perante a sentença de morte, com a justificação da injustiça do não cumprimento das leis da polis. O seu antagonismo não era com as leis da polis, mas sim com os juízes que aplicaram a lei.
Entro novamente na carruagem, continuo, há só mais uma paragem, que até se poderia confundir com o destino. Ela é o sítio da caracterização e avaliação da desobediência civil. A ideia de que a desobediência civil é um desafio à lei dentro da lei, conforme foi já observado, toma forma, mesmo quando analisado à luz da democracia liberal contemporânea, uma sociedade quase justa como cataloga Rawls, em que existem mecanismos de alteração às leis.
Esta forma é realçada sobretudo quando se pretende investigar a sua licitude em termos de utilização de violência física. E esta investigação é bem mais problemática do que parece, especialmente quando se faz intervir a possibilidade da falta de reconhecimento da condição de ser humano a que qualquer pessoa tem direito. Se podemos ver a versão apelidada de pacifista, por exemplo, no beijo que cristo dá ao grande inquisidor que pretendia coloca-lo na fogueira na obra de Dostoievski, também podemos sentir o apelo da emancipação à condição humana pelo sangue, por exemplo, na convocatória de Sartre na introdução á obra de Fanon.
As descobertas não param, para onde quer que se vire a lanterna, ou até se use a lupa. Exemplo de descoberta é a do consenso ancestral de que a desobediência civil só existe a partir da consciência de um grupo e não da consciência de cada individuo ou ainda a de que uma ação deste tipo deve ser levada a cabo sempre ás claras e nunca sob forma de conspiração.
Embarco novamente, a viagem já vai longa, o destino está aí, na profundidade daquilo que é o resultado da reflexão sobre a obrigação política, a autoridade do estado e a desobediência civil. Processo que, independentemente da forma, implica sempre violência, a do tipo que mexe com a consciência. A célebre expressão de dar a outra face, não deve ser interpretada como um convite um convite ao perdão puro e incondicional, mas sim a um ato de extrema violência. Não posso deixar de abordar esta temática à luz da contemporaneidade de um presente que já é passado. Na aplicabilidade da desobediência civil em ambiente que promove acima de tudo a produtividade, a eficiência, onde já só existe o pregão de que tudo é possível, o limite é o do politicamente correto.
Os políticos passaram a ser uma espécie de fornecedores aos seus constituintes, como se estes fossem meros clientes, numa derrogação da ação, na completa negação da política. Nesta massa que a classe política se transformou e em que se pretende que nos transformemos todos, talvez o uso da desobediência civil possa abranger outros campos para além daquele que ainda se considera como o político, numa reafirmação completa do que deve ser a política, de que, mesmo amorfos e sem dar o devido valor, tanto precisamos.












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