por | 13 Mai, 2019 | O Louzadense

Os últimos recoveiros lousadenses

Quem procurar no dicionário a palavra “recoveiro” perceberá que se trata de “mono” da língua portuguesa. Designava, há décadas, o indivíduo que transporta mercadorias, utilizando animais de carga, mediante o pagamento do serviço. A substituição dos animais de carga pelos veículos motorizados ditou o fim da profissão.

Mas, em Lousada, existem memórias bem vivas desse tempo. Maria Amélia Carneiro Ribeiro da Costa, de 91 anos, foi recoveira, um negócio que herdou da família. O filho, José Carneiro Ribeiro da Costa, de 62 anos, continua ligado ao transporte de mercadorias, sendo o proprietário da empresa Transportes Rodoviários de Mercadorias Lousadenses, Lda., sita na Rua de Santo António, nº 557, com a patente Recoveiro Costa..

A história de Maria Amélia começou em França, ainda antes da II Guerra Mundial, conflito que causou sofrimento a toda a sua família e que motivou a fuga para Portugal. Em solo português, casou com Joaquim Ribeiro Costa, cujo pai, Basílio Costa, regressado de França e amputado de um braço, por acidente, tinha criado o negócio da recovagem em 1923. Ajudado por António Lousada, angariou muitos clientes, numa altura em que o transporte era feito com recurso à ferrovia até Meinedo, recorrendo-se depois a animais para trazer a mercadoria para a vila.“O transporte para aqui era feito por burras e a guia era a minha mãe”, explica o filho José. O pai auxiliava com a sua bicicleta “do tempo da guerra”, transportando o excesso de carga que a burra não conseguia carregar.

Mais tarde, quis passar o negócio ao marido de Maria Amélia, mas morreu antes de manifestar a vontade por escrito. A decisão ficou nas mãos da esposa, que passou o negócio a um dos filhos, o Miguel, que “não tinha cabeça”, diz Maria Amélia, acrescentando que as pessoas se queixavam de que não recebiam as encomendas. “Então, a minha sogra, pediu ao Quim [marido de Maria Amélia] que tomasse conta”, explica.

Burra não dispensava as sopas de vinho

Ser guia da burra significava ceder a alguns caprichos do animal, como explica José Carneiro: “Certo dia, o meu pai vinha de Meinedo e viu a minha mãe parada, porque a burra não andava. O meu pai perguntou se lhe tinha dado as sopas de vinho. Faltava-lhe a gasolina (ri). A burra tinha de parar na tasca porque tinha de comer as sopas de vinho”, conta. Gula à parte, garante que a burra era bem educada e que conhecia muito bem o caminho.

Maria Amélia

Maria Amélia nutria um carinho especial pelo animal e também garante que a “jerica era e educada, andava na bordinha e viráva nos locais certos. Ao vir para cá, parava na tasca, estava habituada às sopas de vinho. A bichinha era um encanto”, recorda. Depois da morte da burra, o transporte da mercadoria passou a ser feito com recurso ao cavalo, em 1950. “Um senhor cavalo”, afirma Amélia.

O serviço de recovagem não era fácil e Maria Amélia teve de saber conjugar a vida familiar com a profissão. “Vim de França, não estava habituada, mas fui obrigada a habituar-me. Nunca pedia a ninguém para tomar conta dos filhos. Fechava-os no quarto, de maneira a não terem perigo”, explica.


Joaquim Ribeiro Costa na sua Pachancho

Em 1966, a gasolina substituiu as sopas de vinho. Uma Pachancho passou a fazer a distribuição. E trabalhou longos anos, mesmo quando já existiam as carrinhas, como revela José Carneiro: “O pai fez uma parceria com uma transportadora de Felgueiras, a Transportes Martins, que tinha duas Volvo. Recordo-me que uma delas tinha 18 toneladas e era só para nós. Chegava aqui, descarregava à meia noite, uma hora da manhã. No dia seguinte, como o meu pai já tinha uma carrinha, eu fazia a distribuição com uma e ele fazia com uma moto, uma Pachancho, que tinha um atrelado e era com isso que distribuía a mercadoria. A moto ainda a temos, de 1950 e poucos”.
Em 1971, a capacidade de carga aumentou com a aquisição de uma carrinha Austin 200 J4, de 2 toneladas, de caixa aberta.

Recoveiro, aos 11 anos

Com 11 anos, José Carneiro já trabalhava: “O início foi muito difícil, pois eu perdia-me muito, ia na camioneta e tratava de tudo”, recorda. Mas, em 1974, o jovem recoveiro ganha relevo na empresa. Com 18 anos e a carta de condução, passa a ser o condutor de serviço. Sem experiência, viu-se obrigado a conduzir até ao Porto: “Fui para o Porto pela estrada, atrás da Pacense. A partir daí foi sempre a andar”, recorda. Em 1978, a designação de recoveiro extinguiu-se legalmente.

José Carneiro recorda que é do tempo em que não havia telefones e, portanto, os recoveiros eram elos de comunicação muito importantes. “Aqui a farmácia, o Amílcar Neto e todos os que precisavam de encomendas e material faziam-nos o pedido e nós íamos entregá-lo aos fornecedores, que depositavam no nosso depósito, que é a nossa filial, que ainda se mantém, na rua de Almada, no Porto. Os estafetas dos nossos clientes levavam a mercadoria à cabeça… Tínhamos a missão de tratar dos pedidos e de transportar as mercadorias do depósito para Lousada”, conta.

José Carneiro Costa

A capacidade de carga continuou a crescer, mais tarde, com uma Austin Morris, maior, de 3,5 toneladas, um dos primeiros carros a diesel. É aqui que entra a kispo, que vendia para o grande Porto, sendo a mercadoria transportada pela empresa do pai de José Carneiro. “Isler deu-nos o trabalho todo, para o Porto, Matosinhos e arredores. Havia muito, muito que fazer”, conta. “Muitas vezes, ia 3, 4 vezes ao Porto por dia para vencer o serviço. Se não conseguisse vencer o serviço, o meu pai tinha de avisar o senhor Isler, para este arranjar outra transportadora”, explica. Maria Amélia teve também um papel importante nesta empresa, pois, como dominava a língua francesa, foi intérprete.

Transportadora sem mãos a medir

A empresa foi crescendo e os serviços prestados à Growela (e depois Croca) implicaram um aumento das mercadorias, o que levou à realização de uma parceria com a empresa Transportes Vieira, que servia os clientes com mercadorias na ordem das 18, 22 toneladas. As mercadorias mais pequenas seguiam sem qualquer custo para a empresa do pai de José Carneiro: “Evitou-se assim comprar um camião”, explica.

A carteira de clientes já se aproximava do número 300 quando o pai de José Carneiro faleceu, mas a crise trouxe um duro revés ao negócio. No Porto, foram várias as empresas que começaram a desaparecer e com isso a diminuição de vendas e transporte de mercadorias.

Depois de um período em que os Transportes Rodoviários de Mercadorias Lousadenses se dedicou essencialmente ao transporte de cimento, hoje, presta serviços às fábricas de calçado que exportam para a França, Alemanha, Inglaterra…

Mudam-se os tempos, mudam-se as necessidades

Apesar de saber que vai “morrer como recoveiro”, José Carneiro reconhece que longe vão os tempos em que havia grande necessidade dos seus serviços em Lousada, onde pouco há de serviço de transporte comercial e industrial: “Compreende-se, porque está a 20 minutos do Porto… Dantes levávamos saias para plissar, tratávamos de processos de casamento, passaportes… Hoje, não se faz nada disso”, afirma. Lamenta também que, com a crise, muitas firmas tenham desaparecido. O futuro da transportadora poderá passar novamente pelo transporte de medicamentos. A Castilho, empresa para a qual prestava serviços, foi integrada numa multinacional, mas aguarda novidades positivas no que diz respeito à sua área de atuação profissional nessa área.

Alguma empresas louzadenses que foram clientes da Recoveira Costa – anos 50/60

Drogaria Paulino Pereira Neto, Eurico Nunes de Sousa, Ourivesaria Louzada, Ourivesaria Neto, Ourivesaria Irmãos Teixeira, Casa Valinhas, Estofex, Famo, Farmãcia Fonseca, Farmácia Ribeiro, Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Lousada, Termoleo, Grémio, Adega Cooperativa.

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