A realizadora Regina Pessoa, a residir em Lousada, fez história ao vencer o galardão de melhor curta-metragem nos prémios Annie com o filme Tio Tomás, a Contabilidade dos Dias.
O Louzadense esteve à conversa com a realizadora que nos falou do seu passado, do presente e dos projetos futuros.
Quem é Regina Pessoa?
Eu sou de Coimbra. Cresci numa zona de campo até aos 17 anos. Depois, vim para o Porto para estudar artes como todos os jovens. Acabei por ficar nesta zona. Vivi no Porto até 2012 e depois o pai do Abi Feijó faleceu e deixou esta casa.
Como surgiu o Abi Feijó na sua vida?
Comecei a trabalhar com o Abi no Porto, ainda era estudante nas Belas Artes e procurava um part time apara ajudar a pagar os estudos. Trabalhei com ele. Foi até a minha primeira experiência profissional. Por um lado, o mundo das artes é snob, é difícil de penetrar, não é muito acolhedor em termos afetivos, mas, quando comecei a falar com o Abi, era muito bom. As pessoas são descontraídas, simpáticas, não há lucros em jogo… Quando não há dinheiro, não há manias. É um meio artístico que era valorizado. Gostei muito desse ambiente e conheci um outro tipo de animação que eu desconhecia. Tinha a ideia de que a animação era dos cartoons, o que víamos quando éramos crianças. Ali aprendi que eu podia aplicar o que aprendi nas Belas Artes: a riqueza dos visuais, a plasticidade… E eu podia aplicar isso na animação, com música, narração…
A descoberta de Abi Feijó foi nessa altura?
O Abi era muito reconhecido. Estava a começar Os Salteadores e esse filme continua a ser o filme mais importante que marca um período importante da história da animação portuguesa. E foi aí que eu comecei. Primeiro, ele era o meu patrão e depois começamos a nossa relação afetiva também.
Vocês completam-se?
Nós completamos as nossas visões. O Abi gosta de tratar temas sociais, que também têm a ver com a tradição familiar dele, sociais, políticas, mais na esfera do ser público. Os meus temas são mais pessoais, íntimos, da esfera interior, da pessoa e isso acaba por nos completar nos temas que abordamos nos nossos filmes: o homem social e o interior.
Como vê o espaço Casa Museu de Vilar?
Este espaço é um projeto em movimento, em desenvolvimento. É assim que eu o vejo e tem de ser visto. Assim é a casa onde vivemos é certo, mas é um projeto artístico e é aí que ele se torna atrativo, pois é um projeto artístico de quatro personalidades importantes ligadas à animação: o Abi Feijó, eu, mas também o casal americano-canadiano que é Normand Roger e Marcy Page. E essa dedicação e a sua forma de viver a este projeto acho-as muito bonitas. É generoso e é um projeto em movimento, porque começamos primeiro mudando a nossa atividade para aqui como realizadores e produtores; entretanto, criamos o Museu, que está em movimento, ganhando reputação, reconhecimento e tem crescido muito em termos de visitas, de colaborações e participações de escolas. Também temos tido muitos pedidos de estrangeiros que vêm aqui fazer residências artísticas. Este é um espaço muito atrativo, é ideal para quem quer ver o projeto, dedicar-se… É calmo, é bonito, tem as condições para isso e é uma vertente que gostávamos de desenvolver, para poder receber artistas que vêm cá umas semanas, um mês, desenvolver os seus projetos.
É um espaço inspirador?
Eu acho que sim. Primeiro é no meio do campo, entre o bosque e as vinhas. Abre-se as portas e é como um pequeno tesouro perdido um pequeno jardim secreto. Depois, a visita do museu é muito enriquecedora, não é só a forma como estão dispostas as peças, mas o percurso que o Abi faz, a aula de cinema que ele dá. Ele, nessa aula, tem uma grande virtude: é único, extremamente generoso, nunca diz que não. Eu acho que é a pessoa mais generosa que eu conheço. Ele é capaz de repetir se lhe pedirem o mesmo percurso. Se for preciso, ele repete a visita com outro grupo com a mesma forma e entusiasmo, com a mesma calma. Ele vive novamente o mesmo percurso com a mesma paixão.
Esta generosidade do Abi Feijó colocada à disposição das crianças é muito positiva.
Sim, eu acho que sim. Algumas destas crianças que fazem este percurso, um dia, quando crescerem, possivelmente, vão perceber que esta visita os marcou, os surpreendeu e vão-se lembrar dela. Eu acho que é um privilégio alguém ter a experiência do contacto com o Abi e esta visita é um privilégio, apesar de as pessoas poderem não se dar conta no imediato.
As pessoas do concelho darão o valor justo a este projeto?
Nós damos, mas não sei se a comunidade local, a aldeia ou as aldeias à volta e o Município de Lousada se dão conta do valor do projeto e do alcance dos pequenos triunfos que nós temos conseguido, ou os grandes. Eu acho que não se dão conta dessa importância.
Fale-nos agora um pouco do seu percurso profissional.
O meu primeiro filme saiu em 2000, “A noite”. Esse filme teve dez prémios e encorajou-me a realizar outro, que foi a História trágica e um final feliz. Ganhou o grande prémio Cristal e TPS Cineculte no Festival de cinema de animação de Annecy, que é o melhor festival do filme de animação. Todos eles foram feitos no Porto. Entretanto fiz o Kali, o Pequeno Vampiro, que também teve bons resultados, e este último, o Tio Tomás, que agora saiu. É o meu primeiro filme a ser feito aqui, é o primeiro filme do concelho, feito aqui e tem uma certa forma um significado especial. Eu cresci no campo e agora voltei para o campo. É um filme que fala, de certa forma, das minhas memórias, do mundo rural. Eu tenho aqui o meu atelier, de que gosto muito. Olho por esta janela para relaxar um bocadinho, tem uma paz que eu preciso. Viajo muito, mas estou sempre ansiosa por voltar. Este é o meu recanto.
O Abi tem o museu, tem de ficar aqui, porque é ele que faz as vistas. A minha participação no museu é manter a nossa atividade viva. Faço os meus filmes, dou aulas na Alemanha, viajo muito, porque Portugal é muito pequenino para manter esta atividade viva.
Fale-nos um pouco da história deste filme.
Foi um pouco com o tio Tomás que eu comecei a desenhar de uma forma fora do comum, pois foi com carvão, na lareira, nas paredes, na casa onde ele vivia, de grandes dimensões… Era uma forma fora de comum para se começar a desenhar e era interdita. Na casa dele, era permitido, mas nas outras casas não era, e isso tinha a sua atração. Ele encorajava-me a fazer isso e era ao mesmo tempo rigoroso. Chamava-nos a atenção às proporções dos olhos e da cabeça, para aquilo bater certo. Além disso, era uma pessoa excêntrica, tinha uma série de manias, tinha obsessão pelos números e pelos cálculos e passava grande parte do seu tempo do dia a fazer aqueles cálculos. Era tudo misterioso para mim. Depois ele faleceu, eu guardei grande parte do diário dele, os seus cálculos. Eu achava muito bonita a forma como ele desenhava os números. Ele não era importante para ninguém, era um homem simples, da aldeia, mas era importante para mim, era um homem bom. Ele queria mostrar, de alguma forma, que uma pessoa não precisa de fazer nada na vida de extraordinário para ser importante. É esta a minha motivação
Quanto tempo demorou a fazer este filme?
Durou cinco anos. Teve três anos de preparação. Nós trabalhamos em coprodução com outros países e demorou cerca de três anos para reunir o orçamento e 22 meses de produção efetiva.
Comecei com a técnica analógica, a desenhar à mão as texturas e a riqueza das imagens. Os meus primeiros filmes foram feitos à mão. Depois os meus produtores impuseram-me o digital e foi um choque para mim, mas estas são as ferramentas dos nossos dias. Se eu não aprendo agora, estou a ter um handicapt. Por isso, eu utilizo as ferramentas digitais ao meu serviço e não o meu serviço à mercê da tirania digital.Tenho conseguido e estou muito contente pelo resultado, consegui domesticar o software.
Que projeto gostou mais de desenvolver?
Eu gosto deles todos. É como se fosse uma mãe para os seus filhos. Cada projeto foi uma etapa. Cada projeto representa mais uma pequena conquista na minha carreira ou na minha ambição artística pessoal. Todos eles são importantes para mim.
Já tem ideias para um novo projeto?
Não me deixam descansar e já tenho um novo projeto para iniciar. O próximo será uma homenagem à minha mãe, que eu descobri que, já velhinha, com os oitenta anos, era capaz de desenhar. E eu fiz com ela uma série de desenhos, que eu quero agora explorar.
Eu não tenho formação de escrita de argumento, não é o meu forte, mas quero fazer filmes e a forma que eu encontrei de fazer histórias era falar de pequenas coisas, simples, mas que eu conheço bem. Assim, eu tenho mais hipóteses de ser credível e sei do que estou a falar. Descobri que era uma vida possível.
Eu não sou daqui, mas tenho gostado de morar aqui. Tenho-me dado muito bem com as pessoas, de uma forma geral.
Nós somos uma dupla, cúmplices do projeto e vê-se bem quando recebem bem o Abi faz-me sentir de certa forma incluída. Este é um projeto vasto. Há um museu vivo e ativo. Eu faço os filmes, que são importantes para o museu, pois são feitos aqui, dão a conhecer o museu e a região. O Abi passa grande parte dos dias, não só nas visitas, mas com workshops em quase todas as escolas do concelho. Mantém o museu vivo e leva-o às escolas. Normalmente, as escolas, as crianças e os grupos começam aqui o projeto, com a visita ao museu, e depois começa o projeto do filme de raiz com os grupos de lá, nas escolas. Ele tem feito sete a dez filmes por ano nas escolas do concelho. Entretanto, a palavra espalhou-se e outros concelhos também procuram este tipo de atividades
Os prémios são importantes?

Nesta casa, somos quatro membros da academia de Hollywood e o grosso da academia dos Óscares em Portugal está nesta casa.
Os prémios são estimulantes para um artista, são uma confirmação da nossa aposta pessoal num projeto. É como dizer “tu estavas certa em apostar nesse projeto”. São muito importantes também para este nosso grande projeto, mais vasto, o museu e esta estrutura, pois eu fiz o filme aqui e moro aqui. São também importantes para o reconhecimento deste formato de filmes de animação e, por fim, são importantes para termos mais orçamento e os trabalhos reconhecidos dão-nos mais credibilidade para conseguir fazer os próximos.
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