Opinião de Eduardo Moreira da Silva
Na fábula de Esopo, um homem velho que, no leito de morte, revela aos filhos que há um tesouro escondido na sua vinha. Tudo que tinham de fazer era cavar. Os filhos puseram-se a cavar, mas do tesouro, nem sombra.
Quando o Outono chegou, porém, a vinha deu uma colheita como nunca se vira em toda a região. Perceberam então o legado de experiência que o pai lhes deixara: a benção não está no ouro, mas no trabalho. A muitos de nós, enquanto crescíamos, também nos era transmitida, de forma benevolente ou em tom ameaçador, este tipo de experiências. Sabia-se bem o que era a experiência, os mais velhos passavam-na aos mais novos. Passagem que era feita pela autoridade da idade, pelos provérbios, pelos dizeres mais ou menos eloquentes, por histórias partilhadas em momentos de intimidade de família.
Mas, até talvez antes da minha geração e agora com mais acuidade, cada vez é mais difícil achar pessoas capazes de contar uma história de forma apropriada, que o façam de forma a que história possa perdurar de geração em geração.
A pergunta de Walter Benjamin do princípio do século XX mantém-se: quem é que hoje acha que pode lidar com a juventude invocando a sua experiência?
A cotação da experiência continua em baixa, e ela foi baixando sobretudo a partir da 1ª guerra mundial, com o advento cada vez maior da técnica e, portanto, da tecnologia. Nunca tanto a experiência foi sendo desmentida: as das economias pela inflação, as do corpo pela fome, as morais pelos detentores do poder.
Estamos novamente numa crise, de consequências, que não são ainda mensuráveis. O enorme desenvolvimento da técnica, leva a que abata sobre as pessoas aquele tipo de indigência que consoante o momento histórico acaba por ser sempre uma novidade.
Uma indigência que traz no seu reverso, e continuo a citar Benjamin, a angustiante riqueza de ideias que se difunde em tempos mais difíceis, o regresso da astrologia, do yoga, da religiosidade atípica, da quiromancia, do vegetarianismo, da gnose, da escolástica e do espiritismo. O que a muitos parece um renascimento, nada mais é do que uma galvanização.
Uma espécie de espectro carnavalesco que enche o ambiente, onde se mostra que pobreza de experiência é apenas parte da pobreza que ganhou uma nova cara. Somos levados a questionar de que serve toda a cultura se não houver experiência que nos ligue a ela. A tão detestável mistura de estilos e de visões do mundo, leva a um uso simulado da experiência. A pobreza de experiência não se manifesta apenas no plano privado, manifesta-se no de toda a humanidade, uma nova barbárie segundo Benjamin.
Bárbaro, que é o destino para onde direciona esta pobreza, que leva a começar tudo de novo, a voltar ao princípio, a construir algo com pouco, sem outro olhar que não seja em frente. Mas esta pobreza não significa que as pessoas sintam a nostalgia de uma nova experiência. O que elas pretendem é libertar-se das experiências, anseiam por um mundo onde possam afirmar de maneira tão pura quanto possível a sua pobreza de forma a que possa nascer algo que se veja. Tão pouco são, sempre, ignorantes ou inexperientes.
Muitas vezes é o contrário em que há apenas a saturação e o cansaço de engolir tudo que relacionaram com “cultura” e o “Homem”. Ao cansaço segue-se o sono, e por isso, é fácil vermos o sonho compensar a tristeza e o desânimo dos dias. Benjamin dá o exemplo de uma existência do tipo do Rato Mickey, como o do tipo de sonhos de homem contemporâneo, no qual se observa uma existência cheia de milagres que superam os prodígios da técnica e ainda se riem deles.
Uma existência fantasiosa onde tudo se funde e que se projeta diante dos olhos das pessoas cansadas das infinitas complicações da vida quotidiana, e para as quais a finalidade da vida se apresenta como o ponto que define as infindáveis perspetivas de meios. Existência que se apresenta ainda como redentora, a cada momento, autossuficiente da forma mais simples e confortável.
Ficamos pobres, declara Walter Benjamin. O património da humanidade foi desbaratado, empenhado, muitas vezes, por um infinitésimo do seu valor. À porta temos mais uma crise económica, atrás dela uma sombra. “Preservar” é um verbo que se aplica aos poderosos, que não mais humanos do que a maioria, são, na generalidade, ainda mais bárbaros, mas não da espécie boa.
Os outros têm de se arranjar de maneira diferente e com pouco, ou seja, estão do lado dos que radicalmente e de forma lúcida fazem novamente a sua causa. Mais uma vez a humanidade naquilo que é a construção, naquilo que é narrativa prepara-se para sobreviver à cultura e se calhar a rir. Um riso que soa aqui e ali a bárbaro. Não interessa, junto o meu apelo ao de Benjamin, o de que cada indivíduo de vez em quando ceda um pouco de humanidade àquelas massas que um dia lha devolverão com juros acrescidos.
Foi fácil perceber que o que aqui escrevi se baseia no texto com o mesmo título desse grande escritor e pensador que foi Walter Benjamin, talvez mais difícil seja resistir à densidade do texto. Mas essa resistência é que faz com que se possa ceder um pouco de humanidade e, nem que seja por um momento, refletir sobre a indigência em que nos deixamos enlear perante a tecnologia, o desprezo pela tradição ritual e história, o querer mostrar, a pornografia do eu, a pretensão ao eficiente, o tudo posso porque se partiu de uma tábua considerada rasa.