por | 8 Jun, 2021 | Canto do saber, Opinião

O que escapa à Doutrina Social Cristã e não só.

Opinião de Eduardo Moreira da Silva

Completaram-se há dias, 130 anos desde a publicação da encíclica «Rerum Novarum» do Papa Leão XIII, sobre a condição dos operários. Uma encíclica absolutamente fundamental, uma das mais importantes, na medida, que se trata de um documento fundacional daquilo que é conhecido como Igreja Social.

A encíclica é claramente uma imagem do seu tempo. Um tempo em que contra um capitalismo absolutamente selvagem, praticamente sem qualquer regulação, se movimentavam ideologias do tipo marxista ou anarquista. A luta de classes assumia-se como o epíteto do rompimento com ordem vigente, sobretudo na Europa. O anticlericalismo irradiava um pouco por todo o lado. Apanhada no meio desta efervescência e consciente do aparecimento ainda imberbe de uma classe média, a Igreja Católica vê-se compelida a adotar uma doutrina social.

Esta doutrina, ao tempo da “Rerum Novarum”, dentro do espírito cristão, condena os extremos, o marxismo de um lado e o capitalismo selvagem do outro, curiosamente num tom escatológico que se assemelha ao do marxismo, de que os ricos seriam cada vez mais ricos e menos e os pobres cada vez mais pobres e mais, o que levaria a um confronto final, uma revolução. Ora, a encíclica adverte para os perigos de uma tal revolução e aponta para um entendimento entre classes que conduza à melhor convivência entre os seres humanos. Para tal deslinda toda uma série de instrumentos, que constituem a Doutrina Cristã Social que vem a ser usada como modelo por vários regimes, como é o caso do regime salazarista. Obviamente esta doutrina foi-se desenvolvendo encontrando expoentes dessa evolução nas encíclicas “Mater et Magistra” de João XXIII publicada ao tema “Sobre a recente evolução da questão social à luz da doutrina cristã”; e “Centesimus Annus” de João Paulo II a propósito do centenário da “Rerum Novarum”. Encontra também um respaldo, que muitos consideram mais humanista no atual Papa Francisco, que não se cansa de propalar o carácter universal da dignidade humana que urge preservar.

Esta posição da Igreja, fora dos extremos pelo interior e, sobretudo, depois de algumas experiências de apoio político explícito, levou a uma acomodação dentro de balizas políticas alicerçadas nos princípios católicos, as quais permitiram manter a sua influência sobre o mundo. 

No entanto, à igreja tem escapado, bem como à política em geral, o caráter que coloca o posicionamento humano fora da estrutura esquerda, direita e centro. Curiosamente esse caráter advém precisamente de um dos instantes mais importantes da religião cristã, o da encarnação. Encarnação que se dá em Cristo, filho de Deus. Deus é vida e Cristo, seu filho em pessoa, dá-se ao mundo como vivente, ou seja, a vida é o todo, viver diz respeito ao indivíduo. É este viver, que um Marx mais jovem tão bem reconhece como motor essencial da economia, que realmente marca toda a diferença na relação do ser humano com o mundo. Um viver, que só é possível a partir do momento que estejam reunidas as condições de subsistência de cada um. Passa a haver economia, quando o que se produz é mais do que aquilo que é necessário à subsistência. Dá-se então início a uma densificação do viver que é trabalho, isto é, não se trata de trabalhar para viver, mas sim trabalho porque se vive. Esta densificação está a afastar-nos cada vez mais desse ponto original, o da subsistência, orientando-nos aos extremos e à morte da essência humana do indivíduo. Essa essência cuja perda aparece associada às tentativas de igualação dos indivíduos. Nos regimes comunistas aconteceu com a transformação do conjunto em massas, desvitalizando o indivíduo. No capitalismo, a otimização da obtenção da mais-valia, leva à desvalorização do indivíduo. Na contemporaneidade, esta otimização, tida como advento do desempenho, muito direcionada ao “sim, eu posso”, faz com que cada um de nós se torne empresário de si mesmo num processo de autoexploração. O objetivo é igualar, o trabalho está em todo o lado e, do qual, em muitos casos, o ócio já não se distingue, levando à sua desvalorização, cada vez maior.

É esta dimensão que, já no futuro próximo, terá de ser objeto de reflexão e debate por forma a constituir uma visão do mundo que de facto possa incluir todos os indivíduos numa humanidade que respeite não só o viver, esse viver de cada um, mas a vida em que tudo no universo está incluído, independentemente do seu carácter mais ou menos contingencial. Não se trata de uma doutrina, mas de uma cosmovisão consubstanciada numa filosofia que toma o nome de cristã, mas desenganem-se, nada tem de religioso, apenas materialismo vitalista que nos aproxima da realidade do viver.

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