Opinião de Eduardo Moreira da Silva
Assistimos um pouco por toda a Europa, a uma “manobra”, a que em Portugal tampouco se fugiu, que se convencionou chamar pomposamente “Dia da Libertação”, ou algo parecido. Chamo manobra, porque se parece com algo que eu observo diariamente fazer com um cão que vive num espaço de cerca de 20 a 30 m², onde tem a sua casota e os elementos que proporcionam uma vida digna ao animal. Diariamente os proprietários abrem a cerca deste espaço para que o animal saia para o terreno onde está implantado o seu espaço, o qual possui uma área generosa, na ordem dos 5.000 m². A reação do cão nos primeiros minutos é indescritível, de tanta alegria e até alguma loucura que transmite. Mas, o facto é que ele sai de um espaço cercado para outro, isto é, a liberdade, deste modo, é por ele entendida como o desaparecimento do constrangimento que não o deixa explorar o resto do terreno e, sobretudo, poder estar mais perto daqueles que habitam a casa. Nesse espaço, ele acalma-se, resigna-se com a sua vida, que vai além dos muros para um ou outro passeio, para uma ou outra atividade mais diletante.
Com os chamados dias da libertação, é um pouco isto, sai-se de um confinamento num estado eufórico, como se tudo fosse terminar daí a pouco. Depois, é a realidade, o voltar à vida que se tinha, o fazer o que se fazia e o que não se fazia. A nostalgia depressa se converte em enfado para muitos, assomo de felicidade para uns poucos, mas dificilmente em liberdade, tomada a partir do conceito de Benjamin Constant (pensador, escritor e político). Aquela que muitos consideram como a única ou a boa, como sendo sinónimo de não impedimento, não constrangimento. Mesmo que não o notem, está lá algo que impede uma qualquer ação de espectro mais amplo.
Não quero aqui entrar na discussão estéril sobre qual é a verdadeira liberdade ou a boa liberdade. No entanto, para além da consideração da liberdade feita acima, podemos relevar a liberdade como atributo da vontade e não da ação, naquilo que ela tem como autodeterminação. Estamos a falar da verdade positiva, o contrário da outra, que se denomina negativa. A crítica à liberdade positiva, sobretudo, pelos defensores da liberdade negativa, é a obediência a normas, e leis, e, até, a um Estado, tido, no seu sentido hegeliano, como a mais alta e clara expressão da vontade coletiva. Escapa a esta visão, a diferença entre a obediência a outros e a obediência a si mesmo. É aqui que me detenho, nesta possibilidade de liberdade que depende da vontade.
Nas palavras de Norberto Bobbio (filósofo político), para se poder dizer que uma ação é livre (liberdade negativa), basta o facto negativo de não ser impedida ou forçada; para se poder dizer que a vontade é livre, é necessário não apenas o facto negativo de não ser determinada, mas o facto positivo de ser autodeterminada.
Existem situações em que o indivíduo é livre de fazer ou não, algo e outras em que o mesmo indivíduo tem obrigação de obedecer, a liberdade positiva caracteriza aquela situação em que quem obedece, o faz o mais possível enquanto a obediência à norma se conforma com a sua vontade, de tal modo que é como se obedecesse a si próprio. Ora, o problema é estabelecer esta fronteira prática, que em termos conceituais não oferece grande dificuldade. Já em termos políticos e da própria vivência, a tarefa não se mostra de pouca monta. É de facto uma dificuldade política, que continua sem resolução, conforme se viu e continua a ver, de forma mais evidente, durante os tempos de combate à pandemia.
A reflexão a partir do ponto onde me detive, que deixo para férias, se assim o pretenderem, é a de que desde que a liberdade apareça no viver de cada indivíduo, conformada como a vontade desse indivíduo, então pode pensar-se numa ética que melhora realmente a convivência entre humanos, até porque os constrangimentos tenderiam a ser vistos de outra maneira. O cão não necessitaria que lhe fechassem o seu espaço, teria sempre a porta aberta, ele sairia para o outro espaço, tenderia sempre a ter uma vontade conformada com uma obediência a ele próprio, que seria a de respeitar todas as pessoas e os espaços envolventes. Já não estaríamos a falar de impedimentos, muito menos de “ação” e no fim… Se calhar nem estaríamos a falar do cão.