Um dinossauro autárquico de Lousada
Bombeiro condecorado, atleta de craveira regional, treinador de futebol, dirigente de várias coletividades e presidente da Junta de Freguesia de Pias durante mais de duas décadas são apenas algumas das referências no currículo vastíssimo de António Magalhães da Cunha. Em casa tem um verdadeiro museu com as fardas, os equipamentos, as medalhas, os diplomas, os certificados, os louvores, enfim, toda uma panóplia de elementos que atestam a rica carreira associativa e cívica que hoje é destaque n’O Louzadense.
António e a sua esposa Maria do Céu procuram fotografias e recortes nas gavetas, para melhor ilustrar os feitos deste lousadense. São tantos que não cabem nestas páginas nem nas paredes de uma divisão do rés-do-chão da casa, em Pias. Entre as relíquias ali expostas estão três medalhas de 1 estrela e e uma medalha de 3 estrelas, da Liga dos Bombeiros Portugueses, por assiduidade e desempenho, respetivamente. Do Exército também tem uma condecoração por bravura na guerra do Ultramar. São preciosidades que nos mostra orgulhosamente, assim como os certificados autárquicos e os diplomas de louvor de inúmeras coletividades locais, que adornam as paredes da sala, que mais parece um museu.
A esposa mostra-nos, pendurado atrás da porta dessa divisão da casa, um saco de vestuário, ao qual abre o fecho e de onde se vê uma farda de gala de bombeiro: “é assim que ele quer ir quando chegar a hora dele partir”, declara Maria do Céu.

Embora as maleitas da idade se façam sentir nisto ou naquilo, António Magalhães da Cunha revela a lucidez suficiente para nos informar acerca do que nos falta para aqui publicar acerca da sua vida. Embora discreto, mas muito incisivo e acutilante, o seu espírito condiz com a figura aparentemente franzina, mas rija. Assim se lhe reconhece ter sido sempre.
Nasceu há 82 anos (28 de Setembro de 1939) no lugar do Loreto, freguesia de Cristelos, concelho de Lousada, filho de Maria Francisca Sousa Magalhães e de Eduardo Alves, também conhecido como “Eduardo Carteiro”, filho de Augusto Alves, uma figura típica da primeira metade do século XX em Lousada, que ficou conhecido como “Augusto Lampionista”.
“Sou um lousadense de gema e com muito orgulho”, afirma com um sorriso o merecedor de figurar na capa desta edição d’O Louzadense.

Como a maioria das crianças da Vila, da década de 1940, andou no infantário de Doroteia de Jesus, na rua de Santo António, onde aprendeu as primeiras letras e os números. “Quando cheguei à escola primária passei logo para a segunda classe, devido aos meus conhecimentos avançados”, sublinha.
Acrescenta que fez a Quarta Classe da Instrução Primária com distinção e recorda que a professora se chamava “dona Pureza”. A isso seguiram-se mais dois anos de estudos no Colégio Eça de Queirós.
Teve o primeiro emprego, aos 12 anos, na tipografia Heraldo, propriedade do seu tio Manuel Pinto de Sousa. Foi trabalho que durou pouco, porque o seu tio mudou de ramo, abrindo uma ourivesaria, levando este sobrinho. “A ourivesaria estava situada no prédio da pensão Avenida, mas passado algum tempo mudou-se para Paços de Ferreira, onde eu estive dois anos”, recorda. “Não era uma profissão que me cativasse, embora eu tivesse alguma habilidade para ourives. Mas vim para Lousada, onde fui colocado na FAMO, que ainda se chamava GELMO, e onde estive dois anos. Sentia-me oprimido nessa fábrica, mas contrariado lá me mantive, apesar da porrada que apanhava e de trabalhar 14 horas por dia incluindo muitos fins-de-semana inteiros, para ganhar dois escudos e cinquenta centavos”, lamenta.
“Antes de ir para a tropa ainda trabalhei em mais três sítios: na Fábrica Grande, em Freamunde; depois estive, uma vez mais, na ourivesaria do meu tio, em Paços de Ferreira; e, de regresso à nossa vila, fui para o Jornal de Lousada, que funcionava onde é hoje o Brazão”, conclui acerca dessa fase da sua vida.

Depois da guerra, foi jornalista em Luanda
Em 1960, António Magalhães da Cunha iniciou o serviço militar obrigatório, ou seja, a tropa: “comecei em Espinho, no GACA 3 e terminei no Porto, onde tirei a especialidade no Centro de Mensagens, após o que fui para Lisboa, para o Batalhão de Telegrafistas, onde fiz o curso de Operador Cripto, de mensagens codificadas. Terminado este curso fui colocado no Quartel-General, em Lisboa, onde estive até ser mobilizado para Angola. Parti de Lisboa, num avião, em 14 de Dezembro de 1961 e só haveria de voltar a Portugal em 1967”, explica.
A especialidade militar de António Magalhães era delicada. Descodificar e enviar mensagens encriptadas ou codificadas era muito meticuloso e exigente, por isso tinha que estudar muito no centro militar de Luanda. Logo que foi dado como apto para o campo de batalha, foi transferido para a região de Ambrizete, partindo oito meses depois para o difícil território do Congo. Sobre a vida militar em si não se quer deter, mas refere: “passei ali 20 meses, até passar à disponibilidade. Pelo meio estive dois meses no hospital militar de Luanda a curar uma hepatite que apanhei por causa das águas inquinadas”.
Quando terminou o serviço militar ficou em Luanda a trabalhar e a residir na Rua Fernão Lopes, em Vila Clotilde, uma zona tranquila de Luanda. “Fiquei em casa da dona Elisa, filha do Zé da Adega, que era proprietária de uma pensão. Arranjei emprego na Tipografia Angolana, onde me foram úteis os conhecimentos adquiridos no Heraldo e no Jornal de Lousada”, descreve. No ano de 1965, António Magalhães conseguiu emprego no diário “Comércio de Luanda”, onde “já tinha um salário razoável, mas ainda assim queria mais e fui para a Neográfica, que publicava diversas revistas de Angola e onde exerci o cargo de chefe de equipa com 30 empregados”.
Chegado a 1967, decide acatar os pedidos para regressar a Lousada, que eram formulados por familiares e principalmente pela noiva, Maria do Céu, de Freamunde, com quem se correspondia regularmente por carta.
Regressado à metrópole, empregou-se no diário O Comércio do Porto, que o obrigava a deslocar-se diariamente para a cidade Invicta. Cansado dessas andanças diárias decidiu concorrer a uma vaga no Grémio da Lavoura de Lousada. “Ganhei o concurso e fui desempenhar as funções de escriturário. Ano após ano, fui subindo de categoria até que cheguei a chefe dos serviços administrativos, de onde me reformei”, conta este lousadense.
A política, o futebol, a cultura e os bombeiros
Quando regressou a Lousada, António Magalhães da Cunha devotou-se ao associativismo e à vida cívica com um fervor quase ímpar, tornando-se uma figura de proa da vida pública local do pós-25 de Abril. Filiou-se no Partido Socialista, onde foi por um mandato empossado como presidente da comissão política de Lousada. Através desse partido tornou-se no que é comum apelidar de “dinossauro” das autarquias locais, pois foi secretário da Junta de Freguesia de Pias entre 1976 e 1979, passando depois a presidir até…2001, em seis mandatos consecutivos. Foram mais de duas décadas à frente dos desígnios de uma freguesia “que na altura da minha chegada praticamente não tinha estradas condignas”, recorda o antigo autarca. Por inerência do cargo de autarca de Pias, desempenhou durante 30 anos as funções de deputado na Assembleia Municipal de Lousada.

Quando os meios eram escassos, mas a vontade sobrava, o futebol lousadense da década de 1970 teve um incremento muito grande nas camadas jovens e António Magalhães da Cunha teve um papel preponderante nisso. Foi dirigente e treinador “mas também massagista, roupeiro, motorista, enfim, fui tudo o que podia ser, para bem daqueles rapazes e do clube, onde fui presidente durante dois anos e diretor durante 30 anos, sendo por causa disso agraciado com o título de sócio honorário da ADL em 17 de Dezembro de 2005”, afirma.
A cultura foi sempre uma das suas áreas prediletas, a par do futebol. Foi um dos fundadores e primeiro secretário da Associação de Cultura Musical de Lousada (ACML), papeis que também desempenhou na Associação Recreativa e Cultural de Pias (ARCP).
Mas se a vida autárquica, o futebol e a cultura lhe são muito especiais, então os Bombeiros Voluntários de Lousada (BVL) são outra das suas paixões. “Tenho muito orgulho nestas medalhas”, afirma ao mesmo tempo que aponta para as condecorações. “Entrei para o Corpo Ativo quando o presidente dos bombeiros ainda era o médico Dr. Fernando Fonseca e o chefe era o grande mestre Alberto Alves de Sousa Freire. Como bombeiro, dediquei-me com todas as minhas forças sempre que era chamado. Também fui secretário da direção em várias ocasiões”, sublinha.

Pelos serviços prestados à corporação, António Magalhães da Cunha foi condecorado por três vezes, uma das quais em 11 de Junho de 1980, com a medalha de prata de 3 estrelas, “em virtude do salvamento de pessoas e animais em perigo, com risco da própria vida”.
Aqui fica um resumo biográfico daquele que é profusamente conhecido em Lousada pela alcunha “Xabrega”, que lhe foi atribuída pela professora primária Ester, de Caíde de Rei. Esta docente ao vê-lo jogar à bola no recreio da escola disse “pareces o Xabrega”, que seria um jogador dos anos quarenta do século passado. E a alcunha ficou até aos dias de hoje.
Nota final – O Louzadense agradece a colaboração do casal e dos seus filhos, Jorge e Rui.
Grande Homem, uma historia Linda de vida, parabens