*extrato adaptado de ensaio do mesmo autor com o título “Direitos Humanos ?”
Canto do Saber 42 – Por Eduardo Moreira da Silva
Se os direitos humanos, na qualidade de oposição ao fundamentalismo e busca da felicidade, parecem conduzir-nos a contradições insolúveis, há que perceber se servirão de defesa contra o excesso de poder. Marx é citado pela sua formulação de que o excesso de poder deriva da própria natureza do poder. Nas suas obras de análise da revolução francesa de 1848, As lutas de classe em França e Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte , esta estranha lógica de derivação é apresentada como aquilo que Zizek (filósofo) traduz como estrutura paradoxal da representação populista bonapartista:« estar acima de todas as classes, alternando entre elas, envolve uma confiança direta no abjeto/restante de todas as classes, mais a referência última à classe daqueles que são incapazes de agir como um agente coletivo exigindo representação política.» Há assim, um excesso constitutivo da representação sobre os representados em que assenta este paradoxo. Num Estado de Direito, o poder desse Estado representa o interesse dos seus súbditos, está ao seu serviço, é responsável por eles e, muito importante, está sob o seu controlo. No entanto, a soberania demanda a perceção contida na «mensagem do exercício incondicional do poder: “As leis não me prendem realmente, posso fazer com você o que eu quiser, posso tratá-lo como culpado se eu decidir fazê-lo, posso destruí-lo por capricho”.» Isto, vem ao encontro da definição de soberania de Carl Schmitt : «Soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção.» Algo que, mesmo Marx, parece reconhecer, quando descreve em Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, a que ele assim considera, como espetacular invenção dos franceses , o “Estado de Sitio” . Interessante, torna-se também, ver nesta descrição a conceptualização da Gewalt, termo que significa , de forma quase indistinta, violência e poder, muito presente nos escritos de Marx e Engels e que assume um significado ambiguo, como aponta Balibar ( filósofo) : «refere-se, ao mesmo tempo, à negação do direito ou da justiça e à sua realização ou à assunção de responsabilidade por eles por uma instituição (geralmente o Estado)». Esta dialética, «entre a violência que estabelece o Direito e a violência que o conserva» é explorada por Walter Benjamin ( pensador) em Zur kritic der Gewalt, chamando a atenção para a surpreendente possibilidade de o interesse do Direito pela monopolização do poder face à pessoa individual não se explica pela intenção de garantir os fins de Direito, mas antes o próprio Direito. Trata-se da possibilidade de o poder, quando cai sob a alçada do respetivo Direito, o ameaçar, não pelos fins que possa ter em vista , mas pela sua simples existência fora do Direito.
Estamos, assim perante a violência estrutural do Direito na medida em que « lei pode apenas sustentar a sua autoridade se os súbditos escutarem nelas o eco da obscena e incondicional autoafirmação do poder.» Contudo, este excesso de poder apresenta formas bem mais ambíguas, quando colocamos a questão no contexto das condições do biopoder , «já que [nestas condições] o poder gere populações em lugar de sujeitos distintos.» Na medida em que Foucault ( filósofo) atribui a este biopoder uma capacidade reguladora que consiste « em fazer viver e em deixar morrer» , em contraponto ao poder soberano que fazia morrer e deixava viver, o poder, a violência, « são agora mais indiretos, menos espetaculares, menos orquestrados pela violência do Estado» De alguma maneira, este biopoder, traz uma dimensão pretensamente apolítica , uma vez que se dá pelo uso da tecnologia sobre a população. Esta é a dimensão que Hannah Arendt nos traz, ao estabelecer a distinção entre o poder político, que ele define na base do conceito de força de Engels, e a violência. A violência ao contrário do poder ( da força) necessita de apetrechos , portanto, da tecnologia, para se fazer sentir . A violência de que Arendt (filósofa) fala, é instrumental. Ao admitir que dificilmente as distinções que faz, se encontram no seu estado puro , a autora, acaba por admitir não haver poder sem violência . Omite a dimensão estrutural da violência, talvez em função da época em que escreveu On Violence, em pleno final dos anos 60 do século passado e do próprio receio motivado pela possibilidade, aventada por Walter Benjamin, de uma violência, a violência “pura”, capaz de romper a dialética descrita atrás, que muitos continuam a ligar com o excesso de poder utilizado nas “grandes” intervenções políticas que visaram e visam transformações globais, já , responsáveis por desastres numa escala sem precedente. «O espaço político nunca é “puro”, mas sempre envolve algum tipo de dependência da violência pré-política. É claro que a relação entre poder político e violência pré-política é de implicação mútua.» O poder instituído no Direito que o preserva, autoriza o recurso à violência, na medida em que esta suprima toda aquela que possa colocar em causa esse poder. «A violência não é apenas o suplemento necessário do poder, mas o próprio poder está sempre e já na raiz de toda relação aparentemente “não-política” de violência.» A violência é aceite por todo o tipo de formas sociais “apolíticas”. Constitui-se, segundo Zizek, como uma reificação de determinada luta ético-política. Mas, na sociedade humana, a política constitui-se como princípio estrutural aglutinador, pelo que todas as relações “a” ou “pré” devem ser tomadas como processos políticos. Deste modo, torna-se claro o caráter estrutural da violência na política e as suas possíveis consequências face ao excesso de poder.
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