Escrevia cartas das amigas aos namorados porque não sabiam ler nem escrever
No mês em que se celebra a Liberdade vamos dedicar este espaço a Maria José Ferreira Carvalho, a popular “Miquinhas do Armador”, uma cidadã de princípios democráticos e de paixão pela sua terra. Vai a caminho dos 100 anos (nasceu em 20/10/1923) e é a mulher mais idosa da Vila de Lousada, onde nasceu, no lugar da Boavista, da freguesia de Silvares.
“Vivi sempre na terra onde nasci. Mas dantes, em Lousada, não havia nada. Tive a sorte de ter uma mestra que me ensinou a ler, escrever e costurar. Era a dona Elvira Barros, grande professora, que fez uma peça de teatro de revista onde eu participei”, são algumas das ideias que expressa sobre a infância e juventude. Nesse tempo brincava no lugar do Areínho, agora lugar da Boavista, onde fazíamos danças aos domingos.
Gostava de ir para casa dos avós maternos, no Porto, que viviam na Rua São Dinis. “De vez em quando ia passar uns dias, às vezes um mês. No tempo da fome cheguei a ir com a minha avó a pé buscar mercearia a Matosinhos. O meu avô tinha uma barbearia no Porto”, recorda.
A Miquinhas começou muito cedo a trabalhar na costura e lembra-se bem da primeira peça que fez: “foi uma camisa para o meu pai, toda cosida à mão, num pano às riscas. Levou-me muito tempo a fazer, o meu pai estava sempre a perguntar pela camisa. Quando ficou pronta, foi uma festa”.
Era expedita e muito inteligente. Por isso, era procurada pelas amigas e conhecidas para escrever as cartas delas para os namorados. “Eram todas lavradeiras, iam para a terra (trabalhar na lavoura) e não sabiam ler nem escrever. Havia uma pedra muito grande onde todas combinavam lá deixar as cartas, em segredo, porque os pais não as deixavam namorar”, revela Maria José.
Depois de casar com Joaquim Carvalho, um armador de Lousada, viveu na Rua de Santo António, perto do largo do Pelourinho. Quando enviuvou deu continuidade ao negócio e afirma com orgulho: “trabalhei e assim a minha filha seguiu os estudos”.
Era difícil ser mulher empreendedora, nos conturbados anos de meados do século passado, mas Maria José Ferreira de Carvalho não se atemorizou. “Fui empresária e tinha três funcionários, apesar dos tempos em que as mulheres não mandavam nem iam para nada, pois tudo parecia mal. Agora já não é tanto assim. Naquele tempo eu falava com todos. Mas as mulheres não tinham liberdade”.
Desiludida com a Política
O pai da Miquinhas, António Afonso da Silva foi um comerciante de renome nas décadas de 1950 e 1960 e destacou-se como opositor ao regime fascista. “O meu pai tinha uma mercearia. Esteve preso por causa da política do Salazar, foi perseguido pela PIDE e esteve preso. O administrador do concelho era o Tenente de Malafaia e fui com o meu avô falar com ele. Eu tinha 9 ou 10 anos. Ele atendeu-me e o meu pai foi libertado”.
A política foi algo mais ou menos constante na família. “No tempo da ditadura eu admirava o general Humberto Delgado e mais tarde, já na democracia, o Mário Soares. Na política local admirei sempre o Sr. Henrique Leite, da Quinta da Tapada. Sou do partido socialista. Mas a política está podre, desacreditei tanto nela que a política acabou para mim, por causa destes julgamentos e suspeitas todas”, declara.
O futebol foi durante décadas o principal entretenimento domingueiro da população. Há 50 ou 60 anos eram poucas as mulheres que apreciavam esse desporto, mas a Miquinhas “ia sempre ao futebol, não só no campo da Boavista, mas também quando se jogava num campo em Mós (Silvares). O meu irmão Zeca foi um grande jogador do Lousada”.
“Em casa dos meus avós, via-se o campo de futebol do Porto, que na altura jogava na Constituição. Fui sempre do Futebol Clube do Porto. Gosto do Pinto da Costa e do ex-jogador Quaresma”, diz com forte sentimento clubista.
Figura histórica da Festa Grande
Outra faceta marcante na Miquinhas, talvez a mais importante, é a sua devoção ao Senhor dos Aflitos, cuja procissão ajudou a organizar vezes sem contas: “a religião fez sempre parte da minha vida e em jovem participei numa ida a pé a Barrosas, para pedir ao Bom Jesus que chovesse. Fiz muitas procissões, na vila e nas freguesias todas do concelho na Senhora da Pena, em Vila Real, e na Foz do Arelho”.
Certo ano não havia quem fizesse a festa do Senhor dos Aflitos: “faltava um mês e eu fiz a festa com a ajuda dos dois irmãos, José e Ernesto Pires. Fiquei com a responsabilidade toda e eles ajudaram”.
Além da procissão, gosta de alguns rituais antigos, tradições que ainda perduram: “eu gostava das tigelinhas, não só pela beleza da sua iluminação, mas também porque era uma alegria quando íamos todas, de noite, ajudar a colocar as tigelinhas e os faróis (baldes de papel) que o sr. Ginho Marques fazia. Também gosto dos gigantones. A festa grande dá muito trabalho. Cheguei a comprar duas bíblias, uma das quais custou vinte e dois contos de reis, que tinha ilustrações e era para eu ter uma ideia de como fazer os figurinos e as personagens que podia acrescentar à procissão”.
Na vida, mesmo centenária, há sonhos e projetos que por vezes ficam por concretizar. Mas a Miquinhas, se voltasse atrás, “gostava de fazer o mesmo, não ficou nada por fazer. Graças a Deus ficou tudo realizado. Fiz a Festa Grande até não poder mais. Se pudesse, gostava de fazer a festa outra vez. A minha vida foi trabalhar, agora não trabalho porque não posso”.
Entre 10 irmãos foi a filha mais velha de de António Afonso da Silva e Laura da Conceição Ferreira. Na descendência tem uma filha (Maria Lúcia Ferreira, Professora do 1.º ciclo), dois netos (Sónia Ferreira Babo, Advogada; e João Babo, Eng. Civil), três bisnetos (António Pedro e João, ambos de 10 anos; e Guilherme, de 7 anos).

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