Há uns largos anos atrás, a propósito de uma palestra para a qual fui convidada, defendi que a leitura não é obrigatória, que é preciso compreender a essência da leitura para a amar e que só desse modo ela se cumpre. Referia-me, nesse tempo, com um pé no digital, ao significado de fundo da palavra leitura, às implicações a ela inerentes, não ao ato superficial de abrir um livro, porque fomos obrigados, sem que esse ato opere em nós alguma transformação. Reportava-me, então, ao ato espontâneo de nos recolhermos dentro das páginas de um livro, às mil possibilidades abertas pelo silêncio e ao reencontro com a nossa voz.
A leitura é, em suma, uma vontade de nos reclinarmos sobre os universos possíveis sem deixarmos de ter os pés no chão do mundo, mas de um modo mais inquiridor e profundo. Lamberto Maffei acredita que com o ruído do mundo tecnológico cada vez maior e nos vamos tornando cada vez mais obtusos e afastados dos outros, pois «a correria da vida moderna, o pensamento rápido, não têm por natureza, paciência, qualidade graças à qual sabemos esperar antes de julgar e agir» (O Elogio da Lentidão, Lamberto Maffei, p. 77).
Nesse tempo relativamente distante, a viver o entusiasmo do início do universo tecnológico com «o pasmo essencial da criança», como diria Caeiro, também nós detínhamos essa ingenuidade única ao acreditar que esse avanço era sinónimo de uma felicidade inquestionável e que nos aproximaria de uma ideia de sermos deuses de nós mesmos. Desbravávamos, por esse tempo, um caminho que nos traria a lugares e abismos que hoje nos levam a refletir, por ser um trilho ambíguo e por nos afastar a cada dia mais dos desígnios humanos, de valores absolutos, como a bondade, o respeito pelo outro, enfim, a afetividade como a única fronteira do humano capaz de prevenir o ódio e a guerra no mundo.
No seu livro extraordinário O Infinito num Junco, Irene Vallejo sublinha que «ler é um ritual que implica gestos, posições, objetos, espaços, materiais, movimentos, modulações de luz» (p.56). Ler é, por isso, um cerimonial interior de busca de um silêncio e uma emoção perdidas no bulício da sociedade frenética de consumo. Partilhar com os jovens esta fome de livros, este fascínio por uma certa forma de luz, assaltados pelo mistério em forma de palavras, é mostrar-lhes que a leitura é uma escolha, uma necessidade. A leitura é, porventura, o nosso passaporte para a libertação que julgáramos ver no digital.
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