por | 2 Mar, 2020 | Sociedade

Padre André Aguiar Soares: “A discussão deste assunto não representa um progresso civilizacional, mas antes um retrocesso.”

O tema da eutanásia tem marcado a atualidade em Portugal. Na passada quinta-feira, foram discutidos e aprovados cincos projetos de lei para a despenalização da morte assistida, elaborados pelo PS, BE, PEV, PAN e Iniciativa Liberal. Agora, há agora luz verde para dar continuidade ao processo legislativo.

Depois de ultrapassada a fase que se segue, de discussão na especialidade, o texto comum votado em comissão será aprovado em votação final global e seguirá para Belém, tendo o Presidente da República três hipóteses: promulgar, vetar ou enviar a lei para o Tribunal Constitucional.
Entre os deputados que defendem a “compaixão e liberdade” e aqueles que consideram a despenalização um “retrocesso civilizacional”, há ainda os que não querem sequer pensar na eutanásia sem que antes sejam garantidos os cuidados paliativos a todos os portugueses. Entre os que defendem que certos valores não são referendáveis e aqueles que exigem um referendo para que seja dada voz aos portugueses neste assunto, há aqueles que dirigem um derradeiro apelo ao Presidente da República no sentido de travar o processo legislativo.

O Louzadense quis conhecer a opinião de quatro lousadenses ligados a diferentes áreas: o padre André Soares, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lousada, Bessa Machado, o enfermeiro Renato Gomes e a professora Filipa Pinto, dirigente do partido Livre.

A todos, fizemos cinco perguntas sobre a posição defendida, o debate que se tem realizado na sociedade e no Parlamento e a possibilidade de um referendo sobre o assunto.

  1. Concorda com a despenalização da eutanásia? Quais são as principais razões que o levam a tomar essa decisão?
  2. A eutanásia pode ser considerada como um ato de liberdade individual?
  3. Serão os cuidados paliativos a resposta suficiente para o sofrimento em fim de vida?
  4. Considera que é este o momento certo para discutir este problema em Portugal?
  5. Será o Parlamento o local certo para decidir sobre a legalização da Eutanásia? É a favor ou contra um referendo sobre este tema?

Padre André Aguiar Soares:
“A discussão deste assunto não representa um progresso civilizacional, mas antes um retrocesso.”

  1. Para os crentes, a vida não é um objeto de que se possa dispor arbitrariamente, é um dom de Deus e uma missão a cumprir. E é no mistério da morte e ressurreição de Jesus que os cristãos encontram o sentido do sofrimento. Mas quando se discute a legislação de um Estado laico importa encontrar na razão, na lei natural e na tradição de uma sabedoria acumulada um fundamento para as opções a tomar. Esse fundamento reside no valor da vida humana em todas as suas fases e em todas as situações. A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana é inviolável» (art. 24.º n.º1 ).
    Com a eutanásia e o suicídio assistido não se elimina o sofrimento, elimina-se a vida da pessoa que sofre. Tal como não se elimina a pobreza eliminando a vida dos pobres. A morte provocada não é resposta para o sofrimento. O recurso à eutanásia e ao suicídio assistido é uma forma de desistir de combater e aliviar o sofrimento. Com a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, o Estado afirma que a vida de pessoas doentes e em sofrimento já não merece proteção, não é digna de ser vivida. E isso não é aceitável. A dignidade de uma pessoa não se mede pela sua utilidade para a sociedade, nem diminui com o sofrimento ou a proximidade da morte. A dignidade da vida humana não depende de circunstâncias externas e nunca se perde.
    Não é lícito provocar a morte de uma pessoa a seu pedido… o direito à vida é indisponível. Não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A vida é o pressuposto de todos os direitos, e também da liberdade. Não há liberdade sem a vida. Com a eutanásia e o suicídio assistido atinge-se a raiz e a fonte da liberdade, que é a vida. Existem outros direitos humanos fundamentais indisponíveis que são expressão do valor objetivo da dignidade da pessoa humana. Também não pode justificar-se com o consentimento da vítima a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde.
  2. A vida não pode ser concebida como um objeto de uso privado. Não está de forma incondicional à disposição do seu proprietário para a usar ou a deitar fora de acordo com o seu estado de espírito ou determinada circunstância. Ninguém vive para si mesmo, como também ninguém morre para si próprio. A vida tem uma referência social associada ao amor, à responsabilidade, à interdependência e ao bem comum. Todos temos que defender a vida humana porque a vida não tem apenas valor individual…
  3. Os cuidados paliativos intervêm diretamente no sofrimento, mitigando a dor e outros sintomas, e proporcionando apoio espiritual e psicológico, desde o momento do diagnóstico até ao final da vida. Servem para melhorar a qualidade de vida dos doentes e das famílias que se confrontam com doenças ameaçadoras, independentemente do diagnóstico e do tempo de vida esperado. Os cuidados paliativos são prestados por uma equipa multidisciplinar especializada. Estas necessidades assentam essencialmente no alívio do sofrimento físico e psíquico e no apoio espiritual, prestados por uma equipa devidamente capacitada, e no suporte afetivo, através da família e amigos. Uma correta terapêutica da dor física torna-se necessária e importante para garantir a melhor qualidade de vida. O sofrimento psíquico necessita de acompanhamento e apoio adequado. As necessidades espirituais devem ser valorizadas, para se disponibilizar o apoio devido, que garanta uma intervenção plena no sofrimento.
  4. A discussão deste assunto não representa um progresso civilizacional mas antes um retrocesso. A valorização e a defesa da vida humana em todas as suas fases foram instituídas, em grande parte, pelo cristianismo. Uma sociedade será tanto mais moderna e avançada quanto melhor trata e cuida dos seus elementos mais vulneráveis, criando leis e normas que impeçam o mais forte de exercer o seu poder sobre o mais fraco.
    É absurdo falar em “direito à morte”, como seria absurdo falar em “direito à doença”, porque o direito tem sempre por objeto um bem (à vida, à saúde, à liberdade) na perspetiva da realização humana pessoal, e a morte não é nunca, em si mesma, um bem, pois todos os bens terrenos pressupõem a vida, e nunca a morte. O “direito à morte” seria ainda mais contraditório do que uma escravidão legitimada pelo consentimento da vítima.
    “Direito a morrer com dignidade” terá sentido se com isso se pretende designar a morte em condições humanamente dignas, com a proximidade e o amor dos entes queridos e com cuidados paliativos, se necessários. Não certamente se com isso se designa alguma forma de morte provocada, como o são a eutanásia e o suicídio assistido. Não se compreende que uma morte seja digna por ser provocada, ou mais digna por ser provocada.
  5. A Constituição da República Portuguesa estabelece (nos seus arts.º 24º e 25º) que a vida humana e a integridade moral e física das pessoas são invioláveis. O Direito à Vida e o Direito à Integridade Pessoal constituem os princípios basilares de um Estado de Direito e é deles que decorrem todos os outros direitos e liberdades fundamentais.
    Cabe ao Estado, enquanto guardião dos Direitos Humanos Fundamentais, garantir e defender a Vida e a Integridade Humana em quaisquer circunstâncias, em particular nas situações de maior vulnerabilidade, fragilidade, doença e sofrimento humanos. Porque todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover (art.º 64º da Constituição), constituem especiais obrigações do Estado assegurar um eficiente Serviço Nacional de Saúde e promover e garantir redes nacionais de cuidados continuados e de cuidados paliativos, obrigações essas que se encontram manifestamente por cumprir.
    Admitir-se que deixa de ser punível o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio, nos casos e condições que forem (ou vierem a ser) estabelecidos na lei, significaria que a proteção que as leis, em particular a constitucional e penal, concedem à Vida Humana pode ser retirada às pessoas nas situações em que os deputados o decidam.
    Uma decisão tão grave e fraturante como a de despenalizar e legalizar certos casos de morte a pedido não deve ser tomada no interior dos partidos e nos corredores de São Bento, sem o envolvimento e a participação da sociedade e sem que o povo seja previamente ouvido.
    O Referendo é um importante instrumento da Democracia Participativa e expressão da vontade da população. Não se pretende referendar os Direitos à Vida e à Integridade Pessoal, mas sim dar às pessoas a possibilidade de se pronunciarem sobre uma questão decisiva para a aprovação de uma lei que irá desrespeitar esses direitos, entre tantos outros, porque todos devemos querer um Estado e uma sociedade que não matam, antes cuidam; porque todos devemos defender a inviolabilidade e integridade de todas as vidas humanas; porque todos temos direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover; porque todos acreditamos na dignidade de todas as vidas, em especial daquelas que se encontram numa situação de especial vulnerabilidade, fragilidade, doença e sofrimento; e porque está em causa uma questão de relevante interesse nacional.

Comentários

Submeter Comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos recentes

Autores foram às escolas oferecer livros do Plano Municipal de Leitura

No seguimento das VIII Jornadas da Rede de Bibliotecas de Lousada, que decorreram nos dias 17 e 18...

Natal Associativo a partir de quinta-feira

A época de Lousada Vila Natal já começou, com iluminação das ruas e abertura da Pista de Gelo. O...

Inauguração da exposição “Unidos Venceremos!” com Pacheco Pereira

No âmbito das comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril, foi inaugurada, no dia 24 de novembro, a...

Lousada tem 4.3 milhões para construir e requalificar Centros de Saúde

O Dr. Nelson Oliveira, Vereador da Saúde da Câmara Municipal de Lousada anunciou hoje, na reunião...

Escola: um espelho do Antigo Regime

ABRIL LOUZADENSE (IV) O ensino escolar tinha como regra sagrada “obedecer, obedecer, obedecer”....

Grande polo de formação desportiva

ASSOCIAÇÃO RECREATIVA E DESPORTIVA DE ROMARIZ Fundada em 1977, a Associação Recreativa e...

Mentes Brilhantes para abordar Cibersegurança

No dia 30 de novembro, quinta-feira, realiza-se uma nova edição de Mentes Brilhantes com o tema...

População pressiona Câmara para reabrir avenida Sr. dos Aflitos ao trânsito

PROBLEMAS DA CIRCULAÇÃO AUTOMÓVEL EM LOUSADA São várias as reclamações e sugestões que se colhem...

Nunca é tarde para realizar sonhos e concretizar projetos

JOSÉ FERREIRA NETO O “bichinho” da pintura esteve quase sempre presente na intensa vida artística...

Cecília Mendonça é uma super atleta

COMEÇOU NA PATINAGEM E ESTÁ NO TRIATLO Mãe de dois filhos, Francisco (5 anos) e Duarte (3 anos),...

Siga-nos nas redes sociais