O tema da eutanásia tem marcado a atualidade em Portugal. Na passada quinta-feira, foram discutidos e aprovados cincos projetos de lei para a despenalização da morte assistida, elaborados pelo PS, BE, PEV, PAN e Iniciativa Liberal. Agora, há agora luz verde para dar continuidade ao processo legislativo.
Depois de ultrapassada a fase que se segue, de discussão na especialidade, o texto comum votado em comissão será aprovado em votação final global e seguirá para Belém, tendo o Presidente da República três hipóteses: promulgar, vetar ou enviar a lei para o Tribunal Constitucional.
Entre os deputados que defendem a “compaixão e liberdade” e aqueles que consideram a despenalização um “retrocesso civilizacional”, há ainda os que não querem sequer pensar na eutanásia sem que antes sejam garantidos os cuidados paliativos a todos os portugueses. Entre os que defendem que certos valores não são referendáveis e aqueles que exigem um referendo para que seja dada voz aos portugueses neste assunto, há aqueles que dirigem um derradeiro apelo ao Presidente da República no sentido de travar o processo legislativo.

O Louzadense quis conhecer a opinião de quatro lousadenses ligados a diferentes áreas: o padre André Soares, o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lousada, Bessa Machado, o enfermeiro Renato Gomes e a professora Filipa Pinto, dirigente do partido Livre.
A todos, fizemos cinco perguntas sobre a posição defendida, o debate que se tem realizado na sociedade e no Parlamento e a possibilidade de um referendo sobre o assunto.
- Concorda com a despenalização da eutanásia? Quais são as principais razões que o levam a tomar essa decisão?
- A eutanásia pode ser considerada como um ato de liberdade individual?
- Serão os cuidados paliativos a resposta suficiente para o sofrimento em fim de vida?
- Considera que é este o momento certo para discutir este problema em Portugal?
- Será o Parlamento o local certo para decidir sobre a legalização da Eutanásia? É a favor ou contra um referendo sobre este tema?
Padre André Aguiar Soares:
“A discussão deste assunto não representa um progresso civilizacional, mas antes um retrocesso.”
- Para os crentes, a vida não é um objeto de que se possa dispor arbitrariamente, é um dom de Deus e uma missão a cumprir. E é no mistério da morte e ressurreição de Jesus que os cristãos encontram o sentido do sofrimento. Mas quando se discute a legislação de um Estado laico importa encontrar na razão, na lei natural e na tradição de uma sabedoria acumulada um fundamento para as opções a tomar. Esse fundamento reside no valor da vida humana em todas as suas fases e em todas as situações. A Constituição Portuguesa reconhece-o ao afirmar categoricamente que «a vida humana é inviolável» (art. 24.º n.º1 ).
Com a eutanásia e o suicídio assistido não se elimina o sofrimento, elimina-se a vida da pessoa que sofre. Tal como não se elimina a pobreza eliminando a vida dos pobres. A morte provocada não é resposta para o sofrimento. O recurso à eutanásia e ao suicídio assistido é uma forma de desistir de combater e aliviar o sofrimento. Com a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, o Estado afirma que a vida de pessoas doentes e em sofrimento já não merece proteção, não é digna de ser vivida. E isso não é aceitável. A dignidade de uma pessoa não se mede pela sua utilidade para a sociedade, nem diminui com o sofrimento ou a proximidade da morte. A dignidade da vida humana não depende de circunstâncias externas e nunca se perde.
Não é lícito provocar a morte de uma pessoa a seu pedido… o direito à vida é indisponível. Não pode justificar-se a morte de uma pessoa com o consentimento desta. O homicídio não deixa de ser homicídio por ser consentido pela vítima. A vida é o pressuposto de todos os direitos, e também da liberdade. Não há liberdade sem a vida. Com a eutanásia e o suicídio assistido atinge-se a raiz e a fonte da liberdade, que é a vida. Existem outros direitos humanos fundamentais indisponíveis que são expressão do valor objetivo da dignidade da pessoa humana. Também não pode justificar-se com o consentimento da vítima a escravatura, o trabalho em condições desumanas ou um atentado à saúde. - A vida não pode ser concebida como um objeto de uso privado. Não está de forma incondicional à disposição do seu proprietário para a usar ou a deitar fora de acordo com o seu estado de espírito ou determinada circunstância. Ninguém vive para si mesmo, como também ninguém morre para si próprio. A vida tem uma referência social associada ao amor, à responsabilidade, à interdependência e ao bem comum. Todos temos que defender a vida humana porque a vida não tem apenas valor individual…
- Os cuidados paliativos intervêm diretamente no sofrimento, mitigando a dor e outros sintomas, e proporcionando apoio espiritual e psicológico, desde o momento do diagnóstico até ao final da vida. Servem para melhorar a qualidade de vida dos doentes e das famílias que se confrontam com doenças ameaçadoras, independentemente do diagnóstico e do tempo de vida esperado. Os cuidados paliativos são prestados por uma equipa multidisciplinar especializada. Estas necessidades assentam essencialmente no alívio do sofrimento físico e psíquico e no apoio espiritual, prestados por uma equipa devidamente capacitada, e no suporte afetivo, através da família e amigos. Uma correta terapêutica da dor física torna-se necessária e importante para garantir a melhor qualidade de vida. O sofrimento psíquico necessita de acompanhamento e apoio adequado. As necessidades espirituais devem ser valorizadas, para se disponibilizar o apoio devido, que garanta uma intervenção plena no sofrimento.
- A discussão deste assunto não representa um progresso civilizacional mas antes um retrocesso. A valorização e a defesa da vida humana em todas as suas fases foram instituídas, em grande parte, pelo cristianismo. Uma sociedade será tanto mais moderna e avançada quanto melhor trata e cuida dos seus elementos mais vulneráveis, criando leis e normas que impeçam o mais forte de exercer o seu poder sobre o mais fraco.
É absurdo falar em “direito à morte”, como seria absurdo falar em “direito à doença”, porque o direito tem sempre por objeto um bem (à vida, à saúde, à liberdade) na perspetiva da realização humana pessoal, e a morte não é nunca, em si mesma, um bem, pois todos os bens terrenos pressupõem a vida, e nunca a morte. O “direito à morte” seria ainda mais contraditório do que uma escravidão legitimada pelo consentimento da vítima.
“Direito a morrer com dignidade” terá sentido se com isso se pretende designar a morte em condições humanamente dignas, com a proximidade e o amor dos entes queridos e com cuidados paliativos, se necessários. Não certamente se com isso se designa alguma forma de morte provocada, como o são a eutanásia e o suicídio assistido. Não se compreende que uma morte seja digna por ser provocada, ou mais digna por ser provocada. - A Constituição da República Portuguesa estabelece (nos seus arts.º 24º e 25º) que a vida humana e a integridade moral e física das pessoas são invioláveis. O Direito à Vida e o Direito à Integridade Pessoal constituem os princípios basilares de um Estado de Direito e é deles que decorrem todos os outros direitos e liberdades fundamentais.
Cabe ao Estado, enquanto guardião dos Direitos Humanos Fundamentais, garantir e defender a Vida e a Integridade Humana em quaisquer circunstâncias, em particular nas situações de maior vulnerabilidade, fragilidade, doença e sofrimento humanos. Porque todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover (art.º 64º da Constituição), constituem especiais obrigações do Estado assegurar um eficiente Serviço Nacional de Saúde e promover e garantir redes nacionais de cuidados continuados e de cuidados paliativos, obrigações essas que se encontram manifestamente por cumprir.
Admitir-se que deixa de ser punível o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio, nos casos e condições que forem (ou vierem a ser) estabelecidos na lei, significaria que a proteção que as leis, em particular a constitucional e penal, concedem à Vida Humana pode ser retirada às pessoas nas situações em que os deputados o decidam.
Uma decisão tão grave e fraturante como a de despenalizar e legalizar certos casos de morte a pedido não deve ser tomada no interior dos partidos e nos corredores de São Bento, sem o envolvimento e a participação da sociedade e sem que o povo seja previamente ouvido.
O Referendo é um importante instrumento da Democracia Participativa e expressão da vontade da população. Não se pretende referendar os Direitos à Vida e à Integridade Pessoal, mas sim dar às pessoas a possibilidade de se pronunciarem sobre uma questão decisiva para a aprovação de uma lei que irá desrespeitar esses direitos, entre tantos outros, porque todos devemos querer um Estado e uma sociedade que não matam, antes cuidam; porque todos devemos defender a inviolabilidade e integridade de todas as vidas humanas; porque todos temos direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover; porque todos acreditamos na dignidade de todas as vidas, em especial daquelas que se encontram numa situação de especial vulnerabilidade, fragilidade, doença e sofrimento; e porque está em causa uma questão de relevante interesse nacional.
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