O estado pandémico que estamos a viver leva-nos a fazer inúmeras reflexões sobre o funcionamento da nossa sociedade, nomeadamente sobre o atual sistema de saúde e sobre a solidariedade dos portugueses.
Relativamente a estes assuntos, o conhecimento sobre o passado ajuda-nos certamente a compreender (e até a valorizar) melhor o funcionamento das instituições e da comunidade na atualidade.
Hoje em dia é incompreensível para o comum dos cidadãos que o Estado, apesar de algumas limitações, não seja o garante de um sistema de saúde e de uma assistência para todos. Contudo, isto não foi sempre assim e basta recuar ao período do Estado Novo para percebermos que o sistema de saúde em Portugal era garantido por instituições particulares, nomeadamente pelas Misericórdias. Estas apenas recebiam uma pequena comparticipação financeira do Estado, numa verba que foi sendo reduzida a partir dos anos 30. De facto, nesta altura, a ajuda às instituições de beneficência pautava-se pela supletividade do Estado. Ou seja, o seu auxílio era meramente complementar do bem-fazer e do contributo dos particulares.
Esta política assistencial salazarista colocou muitas dificuldades às entidades gestoras dos hospitais. Note-se que a maioria dos hospitais existentes no país foram fundados por benfeitores e não tinham receitas próprias suficientes para prestar a assistência aos pobres.

Tomemos como exemplo o Hospital de Lousada… Inaugurado em 1912, tinha sido instituído em testamento por Manuel Peixoto de Sousa Freire (1847-1902). Em 1920, foi entregue à gestão da Misericórdia de Lousada, tomando a designação de «Hospital Sousa Freire», em memória do seu fundador. A maioria dos doentes aqui tratados eram pobres, logo não pagavam as consultas, os curativos ou os internamentos. Assim, com a redução das verbas públicas imposta pela política salazarista a partir dos anos 30, a Santa Casa debateu-se com grandes dificuldades financeiras para sustentar o hospital. Teve, então, de recorrer à solidariedade dos lousadenses, apostando na realização de cortejos de oferendas para conseguir as receitas necessárias… Até ao final dos anos 60, fizeram-se vários cortejos! Os mais recentes ainda estarão na memória de muitos!
Lousada, perante a adversidade, nunca deixou ficar mal o seu hospital e soube sempre honrar a generosidade do seu fundador e demonstrar os seus altos valores solidários. Os relatos e as imagens da altura testemunham este facto, evidenciando uma forte adesão da comunidade aos cortejos de oferendas. Um desses exemplos ocorreu a 31 de dezembro de 1944. Incorporaram o desfile 310 carros, oriundos de todas as freguesias do concelho, devidamente decorados e carregados com as mais diversas prendas, acompanhados de ranchos de raparigas trajadas com vestuário típico, entoando os seus cantares. Segundo a imprensa da época, «a iniciativa foi uma verdadeira Cruzada altruísta, repleta de animação, de brilho desusado, de vibrante entusiasmo alacre, em que a juventude representava o maior papel e a lavoura conquistara a primazia nesta enternecedora festa de Caridade». Entre os exemplos de dedicação, esteve o rancho da freguesia de Boim, que mereceu elogios pelos seus trajes pitorescos e pela afinação das suas cantoras. Os seus cantares foram um exemplo do modo alegre, abnegado e genuíno com que os lousadenses ajudaram o «Hospital Sousa Freire».

Canção do Rancho de Boim em 1944.
Vimos cheias d’alegria
Ao nosso Hospital trazer
Nossas humildes ofertas
Para os que estão a sofrer.
Nós somos de S. Vicente,
Duma terra pobrezinha,
Mas, conforme as nossas posses,
Damos alguma coisinha.
Arranjamos o que pudemos,
Em alguma quantidade,
Batatas, cebolas, milho
– Tudo tem utilidade.
Nós conseguimos também
Trazer algum galináceo,
É p’ra tudo cozinhar
Muita lenha e bom chumaço.
Tínhamos dificuldade
Em arranjar carreteiros.
Logo de boa vontade
Se ofereceram os caseiros.
Tudo trabalhou, enfim,
Para conseguir esmolas:
Comissão da freguesia,
Professorado de escolas.
Todos estes donativos,
Do maior aos pequeninos,
Deram de boa vontade
Até mesmo os pobrezinhos.
S. Vicente de Boim
É a nossa freguesia;
Terra de gente humilde,
Mas cheia de alegria.
CORO
As oferendas para o Hospital
Lá vamos nós todas levar
– Que linda festa de Caridade!
Que Deus nos há de abençoar.
2.º CORO
Ó terra de S. Vicente,
Terra da nossa alegria!
Não há terra como a nossa,
Como a nossa freguesia!

Pedro Magalhães
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