A memória é uma das pedras basilares de uma sociedade, tanto na vida pessoal como institucional. Assim, a preservação da memória é fundamental, não só para resgatar o passado, mas para compreender as diferenças, reconhecer os limites de cada período, os avanços e recuos, os erros e os acertos. E encontrar referências no passado para delinear o futuro, descobrir as razões, os fundamentos, os valores e objetivos. (…) Alguém dizia que “os heróis da vida real são os que se voluntariam dão a vida por um mundo melhor”. E isso é independente da condição social, cor ou religião de cada um. Por isso considero importante o livro do José Carlos Carvalheiras, tal como outros que tenham esse objetivo, ao resgatar histórias de vida de alguns conterrâneos nossos que, apesar de já terem partido, deram um contributo à sociedade e deve continuar presentes nas nossas vidas. Parece-me oportuno lembrar outros nomes, outras histórias, uns de gente simples e outros de personalidades mais ou menos conhecidas e cada um à sua maneira deixou uma marca na sociedade lousadense.
VIRINHA – A minha mãe tem 99 anos, não andou na escola porque na sua época não havia escola em Pias, mas lê e escreve com uma letra melhor que a minha. E deve-o à Virinha, uma senhora que vivia aqui ao fundo na Rua de Santo António, numa casa em frente à drogaria Campos Alves. Filha de um solicitador que morreu cedo, educada no Colégio de Bairros, tomava conta de crianças a quem ensinava muitas coisas desde ler, escrever, costurar, bordar, fazer renda e outras coisas mais. Foi alguém que fez um papel que caberia ao estado e de quem não conheço qualquer registo. Mas a minha mãe está-lhe muito grata e considera que ela merece ser recordada…
DR. MANUEL ARAÚJO – É um homem que, não sendo de Lousada, é digno da nossa homenagem e memória. Médico no Hospital de Sto. António, durante 30 anos, deslocou-se regularmente ao Hospital de Lousada para colocar as suas capacidades de cirurgião ao serviço dos mais pobres, gratuitamente.
Mereceu uma homenagem pela Misericórdia de Lousada, à qual se associou a Câmara Municipal, mas é imperioso e justo que o concelho que tanto beneficiou da sua dedicação voluntária tenha memória de quem foi ele e do que fez pelos nossos conterrâneos de então, alguns deles nosso antepassados diretos..
CANICA, O MILITANTE DA ALEGRIA – Tudo o que sei sobre ele é que morava em Pias, era pobre e com vários filhos. Encontrei-o muitas vezes ao longo de vários anos na minha adolescência e já como adulto e só posso dizer que nunca conheci ninguém que irradiasse tanta alegria como ele, apesar das muitas dificuldades que me diziam ter.
ALBERTO ESPINGARDEIRO – Era o mais velho de 3 irmãos duma família humilde de Macieira. Trabalhou como latoeiro, mas a sua habilidade levou-o a aprender por si próprio os segredos das armas e a fazer autênticas maravilhas nesta arte, apesar da falta de meios.
Já durante a Segunda Guerra Mundial como havia falta de tudo, ele inventou uma fórmula de fabricar pregos usando arame de ramada com produção em série: um cortava o arame, outro martelava-lhe uma das pontas e o terceiro aguçava a ponta contrária com 3 marteladas.
Tinha a oficina em metade duma garagem do meu pai e era lá que eu passava parte dos tempos livres a “ajudar” a polir armas antes do “banho”, acender a forja e pôr o ferro em brasa ou a fazer outra coisa qualquer.
Não havia arma que não reparasse, fosse conhecida ou não e da gravidade da avaria, pois era só questão de tempo para a estudar. Caçadeiras de canos rebentados, gatilhos partidos, revólveres e pistolas com avarias mais ou menos complicadas, todas tinham solução. Como não existiam peças de substituição, fabricava-as a partir de uma barra de ferro, com precisão milimétrica.
Das suas mãos vi nascer coronhas de espingarda em madeira de nogueira, autênticas esculturas feitas com ferramentas rudimentares que ele próprio fazia.
A oxidação das partes metálicas, num “banho” especial por ele desenvolvido, dava aos canos e outras peças uma cor e um brilho tal, que as armas ficavam como novas.
Num domingo depois da missa, eu ia para casa do Arnaldo e ao passarmos sobre o regato no lugar das Casas Novas, vimos bastantes peixes meios zonzos no canal que levava a água ao moinho, entre os quais uma truta razoável.
Ao ver os peixes naquele estado, como tinha “culpas no cartório”, o Arnaldo tirou os sapatos, arregaçou as calças e meteu-se na água que não lhe chegava aos joelhos, para os apanhar.
No momento ia a passar o espingardeiro na sua motorizada que, ao vê-lo naquela figura, parou e ficou a apreciar a cena. Como o Arnaldo não conseguia apanhar a truta que teimava em escapar-lhe, ele disse-lhe em tom conselheiro: “Apanha-a bem se a pescar “ao gueto”.
O Arnaldo olhou-o e na sua inocência perguntou “como é que se pesca ao gueto”? Com ar de santo respondeu-lhe: ”Vire as costas à truta, desça as calças abaixo, ponha um bocado de pão no rabo e meta-se na água; quando a truta for comer o pão, aperta as nádegas e apanha-a”. Foi risada geral entre os miúdos que também vinham da missa e à nossa volta assistiam à “pescaria”.
MANUEL PEIXOTO DE SOUSA FREIRE – Um homem invulgarmente bom e que deve servir de exemplo para todos nós: Manuel Peixoto de Sousa Freire.
Fez parte da Comissão de obras que concluiu o Templo do Senhor dos Aflitos, foi um dos mais ativos fundadores da S. Casa da Misericórdia de Lousada em 1897 e foi escolhido para primeiro provedor não porque fosse político, mas porque era um homem de aprumo moral incontestável e o maior benemérito de Lousada. Eleito provedor por 3 mandatos sucessivos, viria a falecer em 1902 sem concluir o último. Entretanto aconteceu uma coisa invulgar: A fundação da Misericórdia em 1897 tinha como objetivo principal a construção de um Hospital para os pobres. Ora, Sousa Freire durante os 5 anos que foi provedor não tomou uma única iniciativa para que fosse construído o desejado hospital. Mas, quando à sua morte foi lido o seu testamento, soube-se que ele deixara em legado o dinheiro para a sua construção, indicava qual eram as pessoas para a comissão encarregada da obra e deixara ainda o projeto. Tudo isto com um pormenor: O testamento fora feito 2 anos antes da fundação da Misericórdia e, para que se não soubesse antes do tempo, foi fazê-lo num notário do Porto com testemunhas que não eram de Lousada. Sousa Freire podia ter seguido o exemplo de Agostinho Ribeiro, o brasileiro que construiu um Hospital em Felgueiras e depois fez a sua doação à Misericórdia local. Mas não quis, pois tinha um pensamento de como deveria ser a prática da beneficência. E é num poema da sua autoria, “A primeira esmola” que se reflete bem o seu carácter de homem modesto que se despe da vaidade e da ostentação apesar da fortuna de que é titular. A poesia que escreveu revela o que ele entendia que devia ser a beneficência. O poema descreve uma família, aparentemente endinheirada, quiçá a sua, num momento de confraternização interrompido por mendigo velho que apelava à caridade. Então a mãe ordena ao filho que entregue ao mendigo a sua “primeira esmola”, mas advertiu-o que o fizesse “sem vergonha e sem vaidade”. Supõe-se que foi sob esta lição de humildade que Sousa Freire orientou o seu comportamento beneficente.
Foi reconhecido pelos contemporâneos como o “protótipo de benemérito, um homem caridoso sem ostentação, afável no trato social, humilde sem laivos de falsa modéstia, apelidado de apóstolo da caridade”. Um caso exemplar e raro da bondade humana.
HANS ISLER – Se Sousa Freire é considerado como “o maior benemérito de Lousada, um homem bom de incontestável aprumo moral”, recordo noutra área e noutro tempo o maior industrial do concelho no século XX: HANS ISLER.
Criou uma Empresa de sucesso, com um aumento vertiginoso do volume de negócios, com base na marca de referência: A KISPO. E a marca teve uma evolução tal que depressa os clientes passaram a chamar “Kispos” a tudo o que fosse anoraques, sobrepondo a marca ao produto. Dominou o mercado interno, vindo a expandir-se na Europa a partir da Suíça.
Como empresário Hans Isler teve sempre grande sensibilidade social, dotando a empresa de condições adequadas ao bem-estar dos seus trabalhadores e pagando salários acima da média, invulgar à época. E essa preocupação atingiu um ponto tal que, dispondo de uma grande área de terreno em frente da fábrica, mandou fazer um projeto para cerca de seiscentas habitações destinadas aos trabalhadores, projeto que deu entrada nos serviços da autarquia. Mas, a impossibilidade de conseguir consenso interno entre trabalhadores e as dificuldades em fazer aprovar o projeto na Câmara, tornaram a sua luta inglória. Acabou por doar o terreno para a construção do Bairro Social que ali está implantado.
Como Empresário e cidadão, foi um Mecenas no apoio a instituições, associações e eventos, como os Bombeiro Voluntários e a Associação de Cultura Musical, dois grandes beneficiários da sua benemerência.
Na homenagem que a ACML por oferecer um instrumental completo para a banda e num período de alguma perturbação revolucionária na empresa, ele disse uma fase lapidar e sentida: “é fácil ser-se socialista, difícil é ser-se empresário com preocupações sociais”.
Se a sua empresa foi um sucesso, este Homem deu a Lousada e ao país algo muito mais valioso para o nosso futuro coletivo, que foi o Conhecimento, o saber sobre confeção, a tecnologia, o design, o marketing e tudo relacionado com a inovação desta indústria, que fizeram da unidade fabril, no dizer de um seu colaborador muito próximo, uma verdadeira UNIVERSIDADE.
A Fabinter tornou-se rapidamente uma referência, uma escola que formou centenas de futuros empresários e onde foram beber o conhecimento todas as empresas de confeção nacionais, tornando-se no modelo a seguir e Lousada tornou-se num polo desta indústria.
Mas este Homem conseguiu fazer algo ainda mais grandioso: Uma REVOLUÇÃO na forma de vestir dos portugueses. Ao fato escuro dos homens e agasalhos como o sobretudo e gabardine, e aos vestidos ou conjuntos de saia e casaco clássicos e cinzentões das mulheres, ele deu lugar ao anoraque comprido ou curto, simples ou acolchoado, impermeável ou não, de inverno ou de verão, clássico ou desportivo, com muitas cores vivas e variadas. A KISPO libertou as pessoas da forma de vestir e do peso da tradição, dando lugar à moda informal, alegre, desportiva. Usar “KISPO” passou a ser sinónimo de bom gosto, modernidade e jovialidade, uma lufada de ar fresco, uma alteração radical no visual dos portugueses.
Hans Isler transformou Lousada de zona rural em polo industrial de confeções, criou e distribuiu riqueza, deixou herança para décadas, senão séculos, nesta terra que, não sendo a sua, adotou e amou, a ponto de deixar indicações para ser enterrado no cemitério mais próximo da fábrica que sonhou e construiu, em Cristelos. Sendo certo que Lousada não soube aproveitar todo o potencial por ele criado, também é certo que não soube reconhecer, nem homenagear e honrar a sua grandeza ao nível que merecia, e dar-lhe um lugar de destaque na terra que tanto lhe deve, uma ingratidão coletiva incompreensível e uma ingratidão particular de alguns que dele tanto beneficiaram.
A antecipação do seu fim acabou por evitar-lhe o desgosto de ter de assistir a algo de inimaginável: O Bairro Social, cuja existência só foi possível graças a ele e à sua dádiva, foi batizado com o nome de… outra pessoa, que nada fez por isso. Como foi possível cometer-se uma injustiça e uma ingratidão desta dimensão, de forma leviana e aligeirada, algo que não passaria pela cabeça de ninguém? Mas, afinal, passou!
E se alguém merece ser recordado pela nossa memória coletiva nesta terra, é sem dúvida Hans Isler, não com um busto mas uma estátua de corpo inteiro, de um HOMEM que foi muito grande, se calhar grande demais para a terra onde “fez uma EMPRESA, uma UNIVERSIDADE e uma REVOLUÇÃO”, sem que para ser grande precise que também lhe meçam o pedestal. E não nos admiremos se um dia o complexo industrial que construiu vier a ser batizado com o nome de um chinês qualquer…
JOSÉ DIAS – Outro grande industrial, talvez o primeiro com preocupações sociais e que construiu uma empresa e um complexo industrial de grande dimensão para a época e para o concelho rural que era Lousada, deu emprego a centenas de pessoas a maioria das quais idas do mundo rural e introduziu as mulheres no mercado de trabalho. No entanto, foi a enterrar esquecido pelas autoridades e pela grande maioria daqueles a quem deu trabalho num tempo em que não havia trabalho qualificado. E como se isso não bastasse, no complexo industrial que construiu e que ali continua apesar da sua empresa ter ficado pelo caminho, não existe nada que honre a sua memória, a memória do “pai” daquele sonho transformado em realidade, que ainda hoje continua a abrigar empresas, manter postos de trabalho e criar riqueza.
Curiosamente, nos terrenos do complexo industrial que construiu, vão surgir agora habitações sociais com o nome de Hans Isler. Mais um equívoco…
Há muitas outras personalidades quase esquecidas como é o caso de Manuel Elisiário Ribeiro Peixoto, Dr. José Camilo Alves Teixeira de Carvalho, coronel Soares de Moura, José Teixeira da Mota, Padre António Borges da Silva Neto, Dr. Luís Pinto Coelho Soares de Moura, Visconde de Lousada, Dr. Hermano, padre Paulino, Costa Sampaio, padre António Belmiro Lobo Magalhães e muitos muitíssimos mais que permanecem sob o manto do esquecimento.
Mas não basta que os nomes daqueles que “por obras valorosas se foram da morte libertando” fiquem lavrados na pedra ou numa placa comemorativa, aqui e ali. Será muito mais importante que se registe publicamente, de forma mais ou menos sucinta como fazem noutros países, quem foram e o que fizeram, para que nomes como Sá e Melo, Visconde de Alentem, Major Arrochela Lobo, Manuel Pires Teixeira da Mota, Palmira Meireles, Sousa Freire e outros não sejam somente um nome na placa toponímica de uma rua ou praça e que nada diz à maioria das pessoas, mas onde esteja associada informação de quem foram, o que fizeram e do seu exemplo de vida a ser seguido.
E já agora, o concelho deve fazer questão de resgatar e honrar os seus melhores filhos, naturais ou adotados e deixar de ter uma visão provinciana de toponímica ao cair na tentação de adotar nomes de personalidades que nada têm a ver com Lousada, só porque são personalidades nacionais.
Como se costuma dizer, nenhuma sociedade merece o futuro se não for digna do seu passado. Por isso, livros como LOUZADENSES COM ALMA, são uma pedrada no charco do esquecimento para lembrarmos os que nos precederam e são merecedores de ser recordados. E precisamos de ter memória. Caso contrário, ao fecharmos a tampa do caixão, enterramos para sempre as histórias que temos obrigação de preservar.
*Discurso proferido na sessão de divulgação do livro LOUZADENSES COM ALMA, de José Carlos Carvalheiras, em 24 de Setembro, na Assembleia Louzadense.

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