Canto do saber 51 – Eduardo Silva
A justiça é sempre um tema recorrente. Podemos afirmar, que não existe quem não formule uma opinião sobre ela, apesar de não existir, propriamente, um conceito perfeitamente estabilizado: existem várias ideias assentes em princípios éticos e morais. No entanto, o seu aspeto institucional é fundamental nos nossos dias. Neste contexto, conforme sublinha João Rosas em “Conceções de Justiça”, a justiça é, antes de mais, uma característica das instituições e, só depois, do comportamento individual.
Ora vem isto a propósito, do filme “A Vingança de Michael Kohlhaas”, um filme vencedor de vários prémios, onde o autor não adota aquela ideia de vingança do senso comum, vulgarmente utilizada numa infinidade de obras. Na verdade, na minha opinião, há um constante maturar da ideia de justiça. Perante, o agravo que é feito à sua propriedade por alguém privilegiado na sociedade medieval, a personagem principal, Michael Kohlhaas, clama por justiça dentro do sistema. Rapidamente, todos os meios a que recorre mostram-se absolutamente infrutíferos perante o nível de privilégio atribuído ao perpetrador da afronta: o nível de corrupção é uma barreira inultrapassável. A sua esposa, percebendo a predisposição para a resolução da questão pela violência, decide apelar diretamente ao poder régio, na pessoa da irmã do rei – uma princesa que se verá mais tarde possuir princípios sólidos-, mas o resultado é a sua morte. Perante este agravamento dramático da possibilidade de alcançar a justiça pretendida, Michael Kohlhaas, enceta uma espécie de revolta contra os senhores feudais. A força de homens que utiliza nesta revolta, engrossa de ação em ação, a partir da massa desfavorecida da população. Contudo, se estes seguidores vêm em Kohlhaas, uma espécie de Messias que os conduzirá a uma nova ordem, ou seja, a uma revolução, portanto à instituição de novo poder, o nosso “herói” apenas procura justiça, isto é, que ao criminoso seja atribuída uma sentença. Com efeito, a forma como dirige os homens nas ações, como trata as populações afetadas e como pune os excessos dos seus seguidores, por um lado, desvanecesse a ideia de vingança como justiça. Por outro, formula a constituição de um novo poder de características completamente diferentes, assentes em premissas que poderemos considerar democráticas que galvanizam os participantes para essa conquista e não para a da justiça dentro do sistema existente.
A ameaça ao poder instituído torna-se real, a princesa procura Michael Kohlhaas e, numa ação que pretende acima de tudo conservar esse poder, convence-o de que lamenta imenso o sucedido com a sua esposa. Promete a justiça que ele demanda e amnistia para todos que haviam desafiado o poder, com a condição de deporem as armas. Ele acede. Através de um processo rigoroso de registo, paga a todos os combatentes, obrigando-os a entregar as armas. O desgosto de todos os que lutaram pelo ideal de transformação é imenso. Alguns, para fatalidade de Michael, acabam por dar continuidade a essa luta: o compromisso com a princesa não é honrado: por consequência a amnistia é anulada. De todo o modo, talvez mais por temor do reacender em força da revolta – a luta agora não passava de um conjunto de pequenas escaramuças -, do que por respeito ao nosso personagem, a princesa intercede por ele. O barão criminoso é julgado e condenado – embora com uma pena leve. Em simultâneo, Michael Kohlhaas é executado por sedição – algo que é por ele aceite – no absoluto cumprimento das prescrições relativas ao sistema estabelecido: se quer justiça, deve conformar-se a ela.
O objetivo deste texto é apontar o desconforto. Aquele que nos bate cá bem fundo: o de refletir se a justiça de um sistema injusto é superior à da fundação de um novo poder, portanto, de uma nova fonte de justiça. Por outras palavras, será que, como Hobbes (filósofo), a partir de momento que aceitamos o Estado, ou seja, o soberano, o nosso dever é o de cumprirmos sempre com as leis por ele emanadas? Ou procurar a justiça, nem que para isso tenhamos que fundar um novo Estado, estabelecer um novo soberano, não no sentido pessoal, mas no sentido de forma de poder?
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