por | 26 Mai, 2023 | Sociedade

Maria das Dores, uma professora cega

Nasceu em Meinedo há 58 anos

Chama-se Maria das Dores Soares da Cunha, tem 58 anos e nasceu em Meinedo, no lugar do Cabo. Nasceu com cegueira total. Aos 2 anos foi para a Senhora da Hora (Matosinhos), onde os pais tiveram um café e ela frequentou um colégio de ensino especial. Tinha 18 anos quando a família voltou definitivamente para a terra-natal e foi estudar para Penafiel. Um pouco do que viveu até agora foi-nos relatado pela própria numa entrevista na escola Rodrigues de Freitas, no Porto, onde dá aulas a alunos cegos.

A falta da vista não impediu Maria das Dores de ter visão para o futuro e sente-se realizada. “Sim, sou uma pessoa feliz, pois faço o que gosto, tenho uma vida decente e não tenho dívidas”, afirma com risos pelo meio.

Licenciou-se em História, na Faculdade de Letras do Porto, sem perder um ano ou chumbar qualquer disciplina. Além de estudiosa é reconhecida como uma pessoa brilhante a vários níveis. “Foi por  opção que segui História, embora também gostasse muito de Inglês. Dentro da História gosto mais da época contemporânea”, declara. Há alguns anos deixou de lecionar aquela disciplina pois, “eu precisava da ajuda de outra pessoa para me ler os testes dos alunos e isso chateava-me”.

O seu marido, Fernando Jorge, de Vale de Cambra, também é invisual. “Eu não vejo mesmo nada, tenho cegueira de cataratas congénitas, mas o meu marido tem o que chamam de percepção luminosa, consegue por exemplo saber se uma luz está acesa ou desligada”.

Conhecem-se desde a adolescência, quando frequentavam o Liceu Leonardo Coimbra, “que se situava onde hoje é mais ou menos a Fundação de Serralves”, explica.

Das causas da cegueira, Maria das Dores não sabe explicar. Não tem conhecimento de antecedentes de cegueira na família, mas refere um facto curioso: “o meu marido tem dois irmãos gémeos, onze anos mais novos, mas um deles é totalmente invisual e o outro não”.

Recordações da juventude

Ter filhos chegou a estar nos pensamentos de Maria das Dores. “Cheguei a ir ao hospital Maria Pia fazer testes e consultas para saber se podia transmitir a cegueira a um filho e disseram-me que as probabilidades disso acontecer eram poucas”, diz a professora, que, contudo, admite que nunca teve “um verdadeiro instinto ou desejo maternal”.

Nestes 58 anos de vida, o que lhe custou mais foi “a mudança para a faculdade, no Porto”. Explica que “qualquer mudança para um ambiente estranho é complicada e no meu caso foi pior porque estava habituada a muito apoio, da família e dos amigos. Na escola de Penafiel eu nunca estava sozinha, tinha amigos que me acompanhavam sempre. Lembro-me muito bem da Cristina (atual deputada na Assembleia da República) e do falecido Paulo Sérgio, a quem chamávamos Quilómetro, um rapaz muito bem humorado, que já faleceu, assim como da Isabel e do Pedro, ambos de Lousada”, recorda.

Na residência universitária “tive que viver por minha conta e isso custou um bocado e mesmo a própria faculdade em si com montes de gente desconhecida, custou-me um bocadinho nos primeiros tempos”.

Genuína e humilde

A humildade está-lhe na essência e isso é fácil de notar ao cabo de alguns minutos de conversa com Maria das Dores. Percebe-se que está ciente das suas inúmeras potencialidades, mas não se vangloria, bem pelo contrário.

Outra característica que sobressai no seu discurso é a sinceridade. Não usa meias palavras e é muito clarividente.  Disso se constata quando diz, por exemplo, que prefere a palavra cega em vez de invisual: “às vezes as pessoas têm medo de uma certa crueza das palavras, são muito sensíveis. Não é o meu caso. Abomino a palavra invisual”.

De forma incisiva mostra-se crítica sobre as novas sensibilidades: “Hoje em dia as pessoas são muito sensíveis. Têm medo de dizer preto, cigano, etc. Substituem trabalhadores por colaboradores, trocam contínua por assistente operacional. São tão delicadas nos tratamentos mas, quando viajam, vão agarradas aos telemóveis e nem se apercebem de quem vai ao lado delas”.

Computadores e redes sociais

A informática está muito presente na vida profissional e pessoal de Maria das Dores. Aliás, “de vez em quando” dá aulas de iniciação à informática a alunos com necessidades educativas especiais.

Não tem conta nas redes sociais porque não quer. Consulta e envia e-mails, faz pesquisas de conteúdos, percorre aplicações informáticas e websites devidamente adaptados para a sua condição. Não obstante toda essa destreza,  considera que é “uma utilizadora daquelas de trazer por casa, mas o meu marido não. Ele é bom naquilo. Tal como eu, tem uma especialização e mestrado em educação especial, mas além disso ele domina bem a informática”.

Gosta dos Abba e dos Scorpions

Nem só de casa e escola é composta a vida desta professora. Viajar não faz parte das opções preferidas, pois ir para sítios desconhecidos não é motivador. Prefere as zonas de conforto, pois claro. Não é adepta de locais barulhentos e compreende-se porquê. A audição é um dos meios fundamentais para se ligar e perceber o mundo envolvente. Por isso, diz que vai a algumas romarias, onde aprecia bandas filarmónicas, mas não gosta dos foguetes. Detesta.

Também vai a concertos. “Um dos mais inesquecíveis aconteceu no Cabedelo (Gaia), com os Scorpions”, revela. É uma das suas bandas preferidas, por causa das famosas baladas, mas é dos suecos Abba que mais gosta.

Planos para o futuro

A vida de todos os dias de Maria das Dores é feita entre Ermesinde (onde reside) e a escola Rodrigues de Freitas, no Porto. Lecionar dá-lhe prazer e realização mas há outra faceta que nesse âmbito a satisfaz: “gosto quando os pais dos alunos me abordam com pedidos de conselhos sobre coisas básicas como atividades domésticas para eles, ou mais complexas como cursos ou áreas profissionais para eles seguirem”.

Quando deixar de lecionar não quer “ficar em casa sem fazer nada”. Quer sentir-se ativa e continuar a estimular as capacidades cognitivas e, por isso, pensa tirar uma nova licenciatura, “talvez opte por Inglês”, conclui.

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