Jangada navega apesar do rombo
Ninguém o conhece por Francisco Rodrigues de Oliveira, mas é o seu nome verdadeiro, há quase 73 anos. É natural de Guimarães, mas em Lousada encontrou uma terra adotiva que preza e estima como se fosse sua de origem. É o Xico Alves, alma mater da Jangada Teatro. Desta “menina dos seus olhos” fala com preocupação, mas também orgulho. A idade é um número e a reforma não está nos seus planos. A paixão é grande demais, maior que o desalento.
É uma figura incontornável não só do teatro como de Lousada, que “sempre fez parte da minha estória, pois era uma das localidades que fazia parte das nossas itinerâncias e sempre teve uma autarquia que valorizou a cultura e que me acolhia como ninguém”, declara Xico Alves.
Quando ocorreram mudanças no seu percurso profissional, “Lousada foi a escolha para desenvolver um projeto cultural, não só pelas potencialidades, mas sobretudo pela sensibilidade das gentes que lideravam os destinos da autarquia”, explica o ator e encenador.
Recorda que “na altura (nos anos 90) os recursos e os meios técnicos não eram os mesmos, mas a avidez do público, sobretudo do público jovem, eram o nosso grande motor, a par da receção e hospitalidade dos lousadenses”. Naquele tempo, “percebíamos que a oferta cultural era escassa. Paulatinamente a política cultural foi evoluindo e com ela o público. Atualmente, temos sempre salas cheias. E não é só nos espetáculos de teatro, também é na música e noutras atividades. Paralelamente, constatamos que o público tornou-se mais exigente e isso, para um ator, é o mais desafiante”, explica.
Do teatro diz que foi sempre a sua “grande paixão, pois só uma grande paixão perdura (há mais de 40 anos) tanto tempo e sobrevive a tantas tempestades”. Os primórdios dessa paixão poderiam estar no acaso, mas não: “outrora, diria que entrei para o teatro por um acaso, mas hoje reconheço que os «acasos» não existem, estava predestinado” e explica que “a paixão num grupo de amigos que se reunia porque queria transmitir «coisas», queria entreter e entreter-se, mas rapidamente se tornou em algo mais sério”, uma companhia de teatro profissional.
Se não fosse no teatro, Xico Alves declara: “não me vejo inserido noutra área profissional que não as artes. Se não fosse ator certamente estaria ligado à criação artística, como a arquitetura ou manualidades”.
Coleciona boinas e …peúgas
Nem só da paixão pelo teatro vive o apaixonado Xico Alves. Quem o conhece sabe da vastíssima coleção de boinas e peúgas que não deixa de aumentar. “As paixões são irracionais, pois então… Comecei por usar boinas por uma questão de comodidade e conforto, em resultado da minha calvície, no verão para proteger do calor e no inverno, do frio. Contudo, este acessório passou a ser imprescindível”.
Num país onde vai ou região que visita é quase certo que de lá traz pelo menos uma boina. Mas chega a perder a cabeça nessa adoração: “isso foi-se tornando uma perdição… já perdi a conta às boinas que tenho”. Ainda assim estima “por alto” que deve ter “umas quatrocentas boinas”.
Também as garridas, confortáveis e ornamentais peúgas são lago de coleção. Aqui não sabe mesmo quantas tem. “As peúgas, foi por inerência, passaram a ser colecionadas, para fazer «pandã» com as boinas!”.
A entrevista ia caminhando para o fim, em tom alegre, mas para o final estava reservada (mais) uma pergunta de cariz difícil. Volta e meia ouve-se o Xico dizer que vai “arrumar as botas”, que já são muitos anos. Contou-me recentemente que se vai aposentar em breve. É verdade? Que planos tem para o futuro? Diante destas perguntas atira assim a resposta: “Não concebo a minha vida sem Teatro e sem a Jangada! Na realidade, é esta a minha linguagem… é este o meu habitat natural. Ainda quero ler muitos textos e ainda queria representar alguns e talvez dirigir outros”.
Corte financeiro fez (muita) mossa na Jangada
O futuro da Jangada preocupa-o por causa do revés provocado pelo corte da Direção Geral das Artes, braço do Governo para o apoio ao teatro e outras artes. Questionado se isso vai abalar a companhia lousadense, Xico Alves admite: “a Jangada é a minha vida, é parte integrante da minha essência. Serei sempre atento e preocupado com o percurso da Jangada e mentiria se afirmasse que o corte nos apoios não fazia mossa. Faz e muita! E não me refiro só à questão financeira. O que se passou é um total desrespeito pelo percurso desta Companhia! É um desrespeito pelas nossas gentes, pela nossa região”.
Pegando na questão de um ponto de vista regional, o ator salienta que “somos diariamente penalizados pela área geográfica onde estamos inseridos. Não temos acesso aos mesmos meios de transporte, aos mesmos museus, aos mesmos empregos, aos mesmos salários”.
Agastado com a decisão governamental comunicada em finais do ano passado, Xico Alves lamenta desta forma pungente: “trabalho no teatro há mais de 40 anos, assisti a inúmeras mutações no meio artístico, trabalhei e trabalho com os melhores e já perdi a conta aos quilómetros percorridos e alguém, sentado confortavelmente no seu gabinete, que não faz a mínima ideia de quem somos, que nunca viu um espetáculo da Jangada, hipoteca o nosso percurso a nossa história… É claro que faz mossa. Foi um rombo, mas não nos afundam. As jangadas não afundam, mesmo com um rombo continuamos a navegar”, exclama.
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