José Calçada: “A escola pública está verdadeiramente desamparada pelo Estado”

GRANDE ENTREVISTA

Nos plenários comunistas, nos palcos das campanhas eleitorais, nos palanques sindicais, nos púlpitos da assembleia da república ou da assembleia municipal, muitos foram os locais onde José Fernando Araújo Calçada patenteou ao longo de décadas o seu dom de oratória. E continua a fazê-lo, nas apresentações do seu livro O Herói e Doze Coisas Mais. Esta é uma das facetas que relevamos nesta Grande Entrevista, a um homem que nasceu em Lisboa em 1946 e dividiu a sua vida por diversas localidades: Angra do Heroísmo, Faro, Coimbra, Évora, Lousada e Paredes, onde reside. É licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde participou na greve académica de 1969. Foi professor do ensino secundário, entre 1970 e 1982, e Inspetor Pedagógico do Ministério da Educação, entre 1982 e 2009, ano em que se aposentou. Foi membro da Assembleia Municipal de Évora e da Assembleia Municipal de Lousada. Foi deputado do PCP na Assembleia da República entre 1992 e 1998. Sempre como comunista indefetível e convicto, pois como o próprio sublinha “só se é comunista por convicção”.

Na sua mais recente obra, O Herói e Doze Coisas Mais, faz referência a Angra do Heroísmo e Évora como os locais que mais marcaram a sua vida, não referindo Lousada nesse contexto. Questionado sobre tal, José Calçada esclarece que “não significa que eu esteja a diminuir Lousada, de modo nenhum. Só que Angra é a minha adolescência em construção, a caminho de um próximo adulto, e Évora materializa e simboliza uma das maiores conquistas do 25-de-Abril, a Reforma Agrária. Pela idade, no primeiro caso, e pela História, no segundo, Angra e Évora teriam sempre um particular destaque na minha vida”.

Da localidade onde foi diretor do jornal regional TVS, na década de 1990, e deputado municipal,  diz que “Lousada foi, e ainda é, muito gratificante para mim. Construí aqui amizades — pessoais e políticas, mas todas fraternas — que sempre me acompanharão” e puxa da memória uma tirada bem humorada a este propósito: “quando vim de Évora para Lousada, no já longínquo 1985, os meus amigos alentejanos avisavam-me, a brincar, que eu não aguentaria «os reacionários do Norte». Ora, bem nos aguentamos, eu a eles e eles a mim. Solidários e afetivos, duros e malcriados quando era preciso — mas sempre fraternos, estes lousadenses” e remata esta passagem da entrevista com um sentimental “oxalá eu nunca os tenha desiludido”.

Mário Fonseca: um socialista-mesmo-socialista

São várias as pessoas de Lousada de quem guarda saudade, mas “há um homem que não posso deixar de referir e, aqui, homenagear: o Dr. Mário Fonseca, que tão cedo nos deixou. E eu disse homem, não disse médico, porque nele era o grande médico que habitava dentro do grande homem. Meio a brincar, meio a sério, eu chegava a dizer-lhe que tinha inveja dele, por ele ser na sua vida quotidiana mais comunista do que eu. Ele ria-se e percebia-se que não se sentia incomodado com esta minha comparação. Sempre olhei para o Dr. Mário Fonseca como um socialista-mesmo-socialista, coisa infelizmente muito rara nos tempos que correm, e como um humanista. E, ainda por cima, benfiquista, imaginem!”.

Outra pessoa “que não posso deixar de assinalar, no meu fácil processo de integração em Lousada, e a cuja amizade muito devo: o Professor Luís Ângelo Fernandes. Dispenso-me de dizer muito mais sobre ele. Os lousadenses conhecem-no bem. Eu pouco poderia acrescentar”. Uma palavra de apreço também faz questão de deixar aqui “a todos aqueles amigos e camaradas — cujos nomes prefiro não assinalar, porque alguns ficariam injustamente penalizados pela minha desgraçada memória –, mas que sempre estavam presentes quando necessário, particularmente nas eleições autárquicas. Comunistas, sim, mas também democratas, gente séria, sem filiação partidária. Que grandes lousadenses!”, exclama José Calçada com saudosismo.

O notório esvaziamento do comunismo na cena política e partidária em Portugal e no ocidente em geral poderia ser motivo de desânimo para este elemento histórico do PCP. Mas José Calçada é perentório: “claro que continuo um comunista convicto! Aliás, um comunista ou é convicto ou não é comunista. Esta convicção foi reforçada, no plano intelectual, pelas sucessivas aprendizagens e lições que a vida me foi proporcionando”. Sublinha que continua seguro de que as suas convicções comunistas “é que constituem e constituirão as bases sérias e seguras para a construção do caminho para a felicidade da humanidade e também de cada pessoa concreta, assente no progressivo desaparecimento da exploração do homem pelo homem”. E aponta o dedo ao vetusto inimigo: “o capitalismo (seja qual for o nome que alguns agora lhe dão) não é o futuro, mas, sempre violento, aparenta dificuldades cada vez maiores. Já não lhe chamam esse nome, de tal modo o nome está queimado: chamam-lhe economia social de mercado. E o nome trabalhadores assusta ainda essa gente de tal modo que, agora, o substituíram por colaboradores.

Reitera que o capitalismo mergulhou numa crise cada vez mais profunda, “mas não se espere que morra depressa. Vai ter uma morte lenta e, com altos e baixos, ainda muito perigosa. Os últimos desenvolvimentos geo-estratégicos apontam para esse último destino, mas também para esses riscos. Pode parecer repetitivo, mas não há alternativa: a luta continua! A progressão da extrema direita não é mais do que o resultado da insatisfação das populações pelo abandono das necessárias respostas por parte dos partidos ditos socialistas ou sociais-democratas“.

Desigualdades cada vez mais brutais

Possuindo uma notável capacidade analítica da sociedade, que patenteia nas intervenções e crónicas periódicas, José Calçada não podia deixar de comentar para O Louzadense o seu ponto de vista sobre o estado da nação. Em jeito de introdução afiança que “um país realmente desenvolvido assenta em dois grandes pilares: a educação e a saúde. O resto vem por acréscimo. No nosso caso, assenta na Escola Pública e no Serviço Nacional de Saúde”. Posto isto, o nosso entrevistado exclama que:

a escola pública está verdadeiramente desamparada pelo Estado, pelo Governo. O paleio em torno da autonomia das escolas acaba por desaguar numa prática em que o governo é que se autonomiza, deixando as escolas entregues a uma entidade vaga, a que chamam comunidade educativa, agora cada vez mais próxima da fragmentação, a que chamam municipalização, gerando desigualdades cada vez mais brutais entre as diversas zonas do país, colocando em causa a equidade do sistema educativo”.

José Calçada

No modo incisivo que se lhe reconhece, José Calçada afirma que “pode parecer excessivo dizer isto, mas o sistema educativo precisa de mais dinheiro, para mais professores, para mais técnicos de educação, para mais funcionários — e todos eles têm de possuir vencimentos e progressão de carreira dignos. Os nossos jovens e as nossas crianças merecem todo o esforço que se faça nesse sentido. E a escola, a partir de uma carga curricular definida para todo o país — e aqui não existem autonomias –, deve usufruir de uma autonomia com a maior criatividade para dar apoio a todos os alunos que dele necessitem, dentro da escola, de modo a que esse apoio não resvale para as explicações fora da escola, acessíveis apenas aos alunos com poder económico para tal”.

Por fim, uma abordagem ao O Herói e doze coisas mais, já apresentado em Lousada no  dia 22. “Não é autobiográfico, exceto no sentido em que todos os livros o são, enquanto reflexos das experiências de vida. De qualquer modo, porque escrito por mim, posso dizer que o livro é meu. Mas, uma vez publicado, o livro pertence aos leitores, a cada leitor, sendo que cada leitor vê no livro aquilo que apenas ele nele vê. É essa a riqueza de um livro, é essa a riqueza da leitura. Por isso eu digo que o ato principal da construção da nossa identidade foi a aprendizagem do ler e do escrever — deriva daí tudo o que somos”.

José Calçada

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