por | 11 Nov, 2023 | Abril Louzadense, Cultura

Ouvir rádio às escondidas

ABRIL LOUZADENSE (III)

Quem não se fiava na propaganda do Estado Novo e procurava informação sobre o que realmente se passava no país e no mundo, corria risco de prisão. Ler ou ouvir informação que fosse contrária àquilo que a ditadura difundia, era subversivo, ia contra a ordem instituída, era crime. Ouvir emissoras clandestinas era uma das práticas mais arriscadas de obter informações fidedignas sobre acontecimentos nacionais, a guerra colonial e outras informações que o regime ocultava e reprimia. Em Lousada muitos ousaram ouvir essas rádios.

As pessoas tinham medo de ler algo que fosse contra a ditadura. Temiam a autoridade, a PIDE. A propósito, conta o portuense António Mota da Silva, antigo sindicalista, que esteve no célebre comício no salão dos Bombeiros de Lousada em 24 de Outubro de 1973: “certo dia na década de 1960 eu escrevi num muro da minha rua «morte à ditadura, fim à guerra colonial» e muitas pessoas quando passavam tinham receio de ler aquilo, pois achavam que se o fizessem estavam a transgredir, a ir contra o regime“. Era preciso coragem para procurar informação verdadeira.

Por isso, os grupos que se juntavam para ouvir emissoras de rádio sem a censura da ditadura, faziam-se corajosos nessa união. Ouviam às escondidas emissões da “BBC”, da “Voz da América” e da “Voz da Alemanha”. Mas era a Rádio Portugal Livre a mais procurada. Diz o lousadense Rui Luís Teixeira da Mota que esta era conhecida como Rádio Moscovo. Tal devia-se ao facto de funcionar em Bucareste (Roménia), financiada por um conjunto de partidos comunistas (União Soviética, Roménia, República Democrática Alemã e Hungria), que se juntaram para apoiar os movimentos antifascistas europeus de países como Portugal, Espanha e Grécia. Foi nesse quadro que o papel da Rádio Portugal Livre, como rádio do Partido Comunista Português, teve um papel importante para a luta antifascista no nosso país.

Durante duas horas por dia, transmitiam notícias que não podiam circular em Portugal, a não ser através da imprensa clandestina. Teve um papel importante, principalmente contra a Guerra Colonial e no apoio a todo o movimento de resistência àquela guerra, tanto por parte dos africanos como pelas tropas portuguesas. Igualmente importante para a criação do Movimento dos Capitães, depois Movimento das Forças Armadas, que desencadeou o Golpe Militar em 25 de Abril, que derrubou o governo de ditadura fascista.

A casa de Manuel Pires Teixeira da Mota, em Cristelos, era um local onde se ouvia a Rádio Portugal Livre, clandestinamente, pois claro. “Pela calada da noite, a casa era frequentada por oposicionistas. Os mais assíduos eram Arnaldo Mesquita, Antero Moreira e José Manuel Barbosa, embora menos frequentes também apareciam o Dr Abílio Moreira, o Rui Feijó, o Clemente Bessa e o engenheiro Malheiro, de Romariz”, relata o filho daquele antigo democrata lousadense.

“O meu pai colocava um copo de água em cima do rádio, pois alguém lhe tinha dito que isso impedia a PIDE de detetar as ondas da emissão”. Era uma crença errada, mas muito comum na década de 1960, pois o copo de água não bloqueava os detetores (radiogoniómetros) usados pela polícia política, para descobrir quem ousava escutar esses programas.

Embora petiz, Rui Mota recorda-se de ver uma carrinha, supostamente da PIDE, com uma antena, a passar para trás e para a frente na estrada de Cristelos, junto à casa dos seus pais.

Noutros pontos do concelho também se ouvia a emissora clandestina em grupos, muitas vezes no local de trabalho. Era o caso da fábrica de calçado de Moreira (Sousela), de José Gonçalves da Costa e da mercearia de Leonardo Neto. O filho deste, o artista souselense José Neto, diz ter “memórias de ver e ouvir homens a falar em surdina, na mercearia dos meus pais, onde ouviam ao fim da tarde e início da noite a rádio Moscovo e outras rádios piratas. Por várias vezes tiveram que fugir, pelas traseiras da casa para a vinha da quinta confinante, quando a GNR batia à porta da mercearia, por terem sido denunciados por alguns vizinhos que eram bufos (informadores) da PIDE”.

E para concluir este capítulo, vamos citar Aurélio Santos, antigo diretor da Rádio Portugal Livre: “o que era entendido como não dever ser ouvido, significava apenas acompanhar a marcha do Mundo, os seus problemas, os seus avanços e, acima de tudo, saber que existiam países onde as pessoas podiam sintonizar os seus rádios livremente, sem medos e sem a necessidade de um copo de água em cima”.

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