Algo que sempre nos afetou e que, nos dias que vivemos, aparece de forma sublinhada, confundindo-nos, acinzentado o horizonte com as nuvens da angústia, é o que podemos chamar paradoxo da justiça.
Justiça, significa, neste texto, um atributo afirmado aos seres humanos, ou seja, “a qualidade de uma específica conduta humana, de uma conduta que consiste no tratamento dado a outros homens.“[2] Não deve assim ser confundido com o termo muitas vezes utilizado para designar o edifício da lei.
Casos há em que, embora se identifiquem os perpetradores, não se esclarece em que medida o sucedido constitui crime e qual a proporcionalidade ao mesmo. No que toca à qualificação como crime, esta aparece relativa a uma norma jurídica ou ao mandamento não matarás ? No caso da qualificação estar no campo da violação a uma norma jurídica, a uma lei criada pelo homem, estará prevista, de alguma forma, a punição. Se se situar no segundo campo, o estritamente moral, o mandamento “não constitui medida de julgamento, é antes guia para a ação das pessoas ou comunidades que a ele recorrem na sua solidão e em casos inauditos assumem a responsabilidade da transgressão.”[3] Numa perspetiva hobbesiana [4], a lei, a tal norma, aparece no sentido de preservação da vida, imposta por temor. A necessidade de alguém ou de uma entidade suficiente forte para defender todo aquele que, em si, delega a sua segurança, torna-se evidente: é o papel do detentor da soberania. Perante esta necessidade, a medida do justo ou injusto, tende a confundir-se com a defesa efetiva relativamente à deliberação do detentor do poder soberano. Decorre daqui, que a punição é justa porque alicerçada na vontade, na ordem, do detentor do poder de soberania – a força da lei -, o do uso supremo da violência para limitar a violência entre os súbditos e, sobretudo, preservar o domínio sobre estes. Justiça aparece aqui, como consequência do estabelecimento do Direito e das convenções. Com a instituição da lei, conforme nota Nietzsche [5], o que é permitido, justo; e o que é proibido, injusto, aparece relativo a essa lei, que pela sua ação acaba por atingir o oposto da vingança.
A conceção de Estado, no sentido contemporâneo do termo, é muito recente : teorizada na idade moderna, só em pleno século XIX, se torna uma realidade geopolítica, com configurações territoriais muito dinâmicas, raramente atendendo às especificidades físicas, históricas, culturais e étnicas pré-existentes, construindo-se soberanias sob as diversas de formas de exercício do poder, precisamente, por aquisição. As que se deram por instituição, basicamente confinaram-se às nações que mostravam alguma unidade ancestral. Claro está, que muitas das situações se constituem como híbridas, em que o poder soberano se estabelece das duas maneiras : subjugando um povo e sendo aceite por outro. Daqui, ressalta, mais uma vez, o paradoxo da justiça, numa outra vertente : a de que os Estados vivem em anarquia, isto é, não existe um poder soberano a que se subordinem. As nações unidas, relembro, não são uma forma de governo, apenas um fórum. Neste enquadramento, como devemos olhar para a instituição da soberania? Deve reger-se por pactos ambíguos, não sobrescritos por todos ou, pior, recorrentemente violados por quem se arroga como detentor da melhor forma de exercício do poder e que tem capacidade para o fazer; ou pelo imperativo moral de que as populações podem escolher aqueles que, na sua opinião, melhor os defenderão? Esta pergunta levanta problemas que acabam por transcender a própria questão do estabelecimento da soberania, desde logo, porque introduz um grau de liberalidade e um conceito de justiça onde a amplitude da distância de afastamento entre a norma e a moral se reduz radicalmente.
Referências:
1. Silva, E. (2022) Soberania e o Paradoxo da Justiça.
2. Kelsen, H. (2019) Justiça e o direito natural, Almedina, Coimbra.
3. Benjamin, W. (2010) Sobre a critica do poder como violência, in O anjo da história, Assírio & Alvim, Lisboa, pp. 49–71.
4. Hobbes, T. (1974) Leviatã ou matéria, forme e poder de Estado eclesiástico e civil, Abril Cultural, São Paulo.
5. Nietzsche, F. (2004) Genealogia da moral: uma polêmica, Companhia das Letras, São Paulo.
Eduardo Silva
Eng.º Civil
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